O SONHO DE JACK NORTH


O SONHO
DE
JACK NORTH

Jack Keslarek

Absentem laedit cum ebrio qui litigat.
(Ofende a um ausente quem discute com um ébrio – ditado latino)

Jack North era um homem de passado obscuro. Seu olhar inquietava; olhava para você como quem desejasse ardentemente a passagem de cem anos em uma fração de segundo. Obviamente, isso não lhe proporcionava popularidade na cidade. Tampouco impopularidade. Não chegava a ser evitado. Era apenas como uma pedra que estava ali, ou como o ar, que todos sabem estar ali, até que não se pensa nele. Seus atos eram inorgânicos. Devia ter lá entre trinta e quarenta anos e exibia até uma boa aparência, assim como pode ter uma boa aparência uma porta entre trinta e quarenta anos, feita de uma madeira de razoável qualidade. Jack North era uma porta com um olhar incômodo.

Às oito da manhã daquela quinta-feira fria e ensolarada, Jack North adentrou pontualmente o ordinário escritório de despachos do Sr. Bertoni, na Pequena Kansas City, onde ocupava uma mesa de trabalho havia alguns anos, de segunda a sexta-feira. Saudou acenando a secretária, Srta. Sylvia Smith, que devolveu o cumprimento com um luminoso sorriso, por estar ao telefone com Ivone, como em todas as manhãs.

Ivone era uma amiga da Srta. Smith de quem Jack North conhecia apenas o nome, assim mesmo das ocasiões em que elas se falavam ao telefone, invariavelmente todos os dias, no momento mesmo em que ele ingressava no escritório, às oito da manhã, jogando o chapéu e pendurando o sobretudo sobre o mancebo ao lado da porta:

- Ivone, tenho que desligar, o Sr. Jack North acaba de chegar.  Bom dia, Jack, como vai?
Eram estas as únicas coisas que Jack North sabia sobre Ivone: o primeiro nome, que era amiga da Srta. Smith - a quem chamaremos Sylvia - e que telefonava para amiga todos os dias pela manhã. Embora Sylvia fosse também uma pessoa até certo ponto informal no tratamento com os colegas e clientes do escritório de despachos Bertoni, mantinha com relação à sua vida privada uma reserva quase absoluta. Ele imaginava tratar-se de uma solteirona que vivesse sozinha, possuísse algum ou alguns animais de estimação, uma mãe que morasse no mais remoto da zona rural, e essa amiga Ivone, de quem conhecia apenas o nome. Ignorava que Sylvia tivesse alguma família na cidade ou fora dela. Entre ela e Jack North não reinava qualquer tipo de intimidade além daquela proporcionada pelos papéis e documentos, objetos do trabalho comum. Dispensavam entre si um tratamento superficialmente informal:

- Bom dia, Sylvia. Vejo que os documentos que pedi já estão aqui em minha mesa. Se continuar assim, logo tomará o meu lugar na firma, e quiçá o senhor Bertoni que cuide do seu emprego!
-Ora, senhor Jack North, só o senhor mesmo! - a secretária corou de leve, menos por timidez, mas porque era muito branca, um tanto quanto luzidia em suas formas arredondadas, e tinha sempre o pequeno nariz avermelhado, sobretudo nos dias frios. Sorriu um sorriso largo e cheio de dentes. Às vezes Sylvia lembrava a Jack North algo como um boneco de neve, embora não fosse desprovida de uma certa graça e languidez, até um tanto voluptuosa. Dependendo do ângulo que oferecesse à visão, Jack North surpreendia-se contemplando com certa admiração a mulher, que não devia ter muito mais que seus trinta anos. “Sim”, pensava, “até que não é má”.  Para ele, Sylvia tinha um perfume agradável, e uma pele que convidava ao toque. Achava estranho que ela não tivesse um relacionamento com um rapaz de boa família. Tudo indicava ter sido talhada para uma boa matrona.

- Cazzo! – foi o grito vindo do outro lado da sala, que despertou Jack North de suas observações. Era o Sr. Bertoni que, como chefe daquela pequena porém rentável firma, também se ocupava ao telefone com algum cliente; ele passava os dias falando ao telefone e anotando em um bloco sobre sua mesa informações desconexas, cujo trabalho de Jack North era traduzi-las em um vernáculo técnico compreensível às autoridades públicas competentes, em forma de ofícios, requerimentos e memoriais, que o Sr. Bertoni conferia ao final do dia e assinava. No dia seguinte, Sylvia incumbia o office-boy de registrar os documentos junto às respectivas repartições.

Após desligar o telefone com certo arrebatamento, o Sr. Bertoni levantou-se com suas anotações, fixando-as com os olhos por alguns instantes, ar contrariado:

- Jack, você vai ter um belo trabalho aqui com esses papéis – e meneou a cabeça, como que se desculpando pelo trabalho que Jack North teria com aqueles documentos – foi o melhor que pude arrancar daquele turco da casa de empenhos. Temos uma pasta dele nos arquivos, magnificamente organizados pela nossa Srta. Smith – e lançou a papelada de forma anárquica sobre a mesa de Jack North – você já se desincumbiu muito bem de coisas piores, filho – disse acendendo um charuto, e dirigiu-se a seu pequeno gabinete particular, onde provavelmente iria usufruir de um de seus legítimos escoceses vinte anos, sempre presenteados pelos clientes. Jack North nunca era convidado a participar das libações do Sr. Bertoni.

O senhor Bertoni era um corpulento filho de italianos, usava suspensório combinado à gravata e possuía um basto bigode negro e uma verruga cinematográfica ao lado do nariz. A figura pitoresca daquele homenzarrão já um tanto avançado em idade, que penteava os cabelos para trás com fixador, deixando à mostra uma respeitável calva, em princípio, remetera imediatamente a imaginação de Jack North aos filmes de máfia. Quando se irritava, o que acontecia com alguma frequência, lançava mão de seu impropério preferido: “Ma que cazzo!”. Não obstante, prevalecia nele um ar de amabilidade, podendo, eventualmente, até ser justo e generoso para com seus subordinados. Embora o trabalho fosse a único fator que unisse personalidades tão díspares como Jack North e o Sr. Bertoni, parecia consenso que a figura deste era agradável e dava um certo colorido exótico ao dia-a-dia monótono
desse que era um escritório como qualquer outro.

Como em todos os dias, ao aproximar das dezoito horas, Jack North preparava-se para sair. Observou pela janela a noite escura de Pequena Kansas, procurando indícios que o aconselhassem a lançar mão do cachecol. Não é exagero dizer que a verdadeira vida de Jack North tinha início apenas quando recuperava seus pertences do mancebo e deixava o escritório de despachos Bertoni para ganhar a rua.  O próprio Sr. Bertoni já havia ido embora e apenas Sylvia permanecia para trancar o estabelecimento às dezoito e trinta. Despediu-se da colega com um “boa noite, Sylvia”, como sempre fazia, mas esta o deteve com uma estranha indagação:

- Quando é que você vai me convidar para um drink naquele bar simpático que você anda frequentando, Jack? - Jack North sobressaltou-se: – Como?

- Sabe – e Jack North não sabia se ela emulava, simulava ou ovulava essa estranha forma de falar – tenho sentido necessidade de sair um pouco, e como divido meu tempo entre casa e trabalho por todos esses anos, não posso imaginar quem poderia me fazer companhia, apenas para que não fosse só, supondo-se que uma moça sozinha em um bar sempre possa causar estranheza, ou dar ensejo a incidentes pouco cavalheirescos...

- Bem, você não tem essa amiga, com quem fala ao telef...

- Ivone? Não, ela não poderia... – e Jack North permaneceu em silêncio por alguns segundos, perplexo, aguardando que Sylvia explicasse por que Ivone não poderia. A explicação não veio e
Sylvia sequer pareceu dar-se conta, vez que permanecia empertigada, em silêncio, como quem aguardasse, não, exigisse uma resposta. Jack North recuperou-se, inerme:

- Bem, podemos ir amanhã após o expediente, se não for problema para você. Agora tenho que sair. Boa noite – e fechou atrás de si a porta, sem esperar resposta, ganhando a rua. Esquecera o cachecol no escritório e a noite estava mais fria do que imaginara, mas resignou-se, não iria retornar para busca-lo;  balbuciou automaticamente, desapercebido, uma expressão que seu avô costumava dizer quando se resignava ante a teimosia da avó: “tanto faz”. A verdade era que aquele homem não passava de um tímido, solitário e arisco.

Cabe a nós asseverarmos, agora que Jack North ganhava as ruas de Pequena Kansas City, que não se trata de forma alguma de um ser extraído de um mundo fantástico, não mais fantástico que o mundo dos homens. Se em tão poucas linhas pudéssemos narrar para trás, talvez chegássemos até os frios campos da Cracóvia, mas a urgência nos impede de descrever inclusive Jack North na infância, em meio a seus muitos irmãos de mãe, de pai, e de mãe e de pai, capturando insetos e promovendo entre eles uma luta feroz. Seria desejável - ou talvez não, vez que não se trata aqui de nenhum Doutor Fausto - resgatar dos primórdios um personagem como esse, mas o curto caminho das palavras e a nossa própria ignorância sobre os primeiros tempos de uma vida tão hermética nos impede de um mergulhar profundo rumo à estrutura desse caráter atormentado pela dúvida e pela culpa. Dos poucos fatos que conhecemos sobre a vida desse Jack a que damos o epíteto de  North, resulta que a ele podemos emprestar uma empatia paternal; não desperdiçaremos Jack North - se em anos incipientes (e isso apenas imaginamos com a parcialidade da simpatia que lhe devotamos) fora ele uma promessa de felicidade, este seu momento é para nós a actio ad exhibendum de tão singular criatura.

Jack North, guarda-chuva à mão, dirigiu-se até o bar de um ancião de passado pouco recomendável. Era o Barba.

***

Ingressou empertigado ao bar do qual sairia trôpego, trêfego e sôfrego. Barba sorriu como Mefistófoles, ao notar a entrada do bom freguês:

- Superficial ou profundo hoje, meu amigo?

- Nunca sei se você é o Barba ou Barrabás.

- Se eu for Barrabás, serei solto.

- Barrabás é um coadjuvante importante. Mas não passa de uma escada para o personagem principal, como entre os humoristas. Hoje estou superficial.

E pegou o copo de chopp que lhe foi estendido pelo velho Barba, que a Jack North se assemelhava a um Sileno.

- Tudo muda quando se toma um bom copo de chopp em um belo pub, meu velho. Quanto aos humoristas, prefiro os irmãos Marx - disse o das patas de bode. Jack North bebeu com sofreguidão.

Apenas os dois se encontrariam no bar, proprietário e cliente, não fosse pelas cadeiras viradas sobre as mesas e o servente de ar tétrico que lustrava o piso com um pano, sob luzes fracas, e quem sabe os funcionários que deviam estar na cozinha, preparando os pratos. Jack North retornava cedo para casa, e então chegava ao "Bar Ba" (sim, esse era o nome) antes de se acenderem os letreiros e se abrirem as portas. Frequentemente, como nessa ocasião, o Barba lhe franqueava a entrada.

O velho Barba era um verdadeiro filósofo. Não daqueles de cátedra, mas daqueles de bar. Dizia não gostar de Sartre, porque este "morrera se mijando", nem de Nietzsche, porque "morrera como uma mulherzinha histérica". Jack North tentava imaginar a forma digna pela qual aquele velho ogro pretendia morrer e, eventualmente, beijava a imagem de Jesus que carregava junto ao peito, com devoção contrita. Desejava a paz e a Cidade de Deus, embora muitas de suas atitudes não o denotassem. Era um crente. Podia crer na humanidade, mas sabia que não poderia confiar na humanidade daquele interlocutor específico. Havia algo de trágico naquela personagem emulada pelo dono do bar, e Jack North estaria sempre superficial em sua presença, sem preocupar-se em afetá-lo, mas espontaneamente, como uma defesa de um instinto clássico, como um escudo ou uma greva ou uma máscara, ou até por uma devoção medieval, como uma graça. Jack North não era um humanista, tampouco um jesuíta. Jack North era uma criatura e um ator involuntário de si próprio. Talvez houvesse algo de trágico nele também, ou naqueles dois homens, ou talvez sejamos nós que simploriamente imaginamos ver como virtude o que não passa de uma homenagem prestada pelo vício.

- Sabe, Jack North, você é um cara muito estranho. É por causa de caras estranhos como você que eu não bebo há vinte anos.

- E o que faz de mim um cara estranho?

- Nada. É por isso que te acho estranho. Fala pouco. Conheço a alma do homem.

- Porque você deve viver de comprá-la, como Mefistófoles.

O Barba sorriu o seu sorriso, sempre o mesmo. Nunca ria abertamente. Jack North também. Sorriu e esvaziou mais uma entre muitas canecas. Seu sorriso era estranho e fechado. Não gostava de mostrar os dentes. Não desprezava aquele velho barbudo em trajes de motociclista “Hell’s Angel” e lenço de caveiras na cabeça, diabólico como os pôsteres de bandas de rock que cobriam as paredes, mas o diabólico das bandas de rock e do figurino do Barba era apenas caricatural e teatral e pueril, pois aceitariam - o Barba, aquelas bandas e Jack North - a fé, a esperança e a caridade onde pudessem encontrá-las; havia algum artigo de fé em Jack North e no Barba que os comungava, mas que ao sabor do tempo procuravam obnubilar com ar impassível - algo que ao velho dono do bar parecia não escapar. Jack North se mexeu desconfortável sobre o banquinho ao balcão. O Barba encheu novamente sua caneca, e ele tornou a esvaziá-la, incontinenti.

- Saúde! - falou o filósofo das canecas. - Talvez algum dia eu beba um chope com você, Jack North, seu esquisito! Se não fossem os tombos de moto e os pinos de metal nos ossos e a diabetes e os remédios que tenho que tomar, beberia uma contigo agora.

- O que impediu você de beber e pilotar motocicletas fez com que passasse a ler filósofos e estudar qualquer coisa. E assim posso trocar umas palavras com alguém neste fim de mundo. Alguém culto como você - cada ironia e sarcasmo vomitado por Jack North deixava sua garganta de tal forma ressecada que, a cada frase, era necessária uma caneca de chopp. Por mais que se esforçasse - e falava muito - falar parecia a Jack North uma tarefa olímpica, majestosa, como se cada período vocalizado fosse uma limpeza completa nos estábulos de Áugias. Mas o Barba gostava de ver Jack North falar. O barba vendia chopp.

- Jack North, meu irmão, tenho quatro filhos para criar, e uma mulher insuportável. Amo esses pentelhos e essa mocréia, se é que você me entende.

- São palavras muito carinhosas.

- Você é um imbecil, Jack North. - o Barba abriu uma garrafa de água e brindou. Saúde! Você ainda não chegou aos quarenta. Há uns vinte anos eu ia te dar uma bela surra.

- Sou expert em levar surras, meu caro - e levou a caneca à boca - Saúde! Não tenho nenhuma dúvida de que você, meu caro Barrabás, pode me surrar a qualquer momento. Menos no que diz respeito à concordância.

Barrabás bebeu a água. Foi chamado da cozinha e virou-se, dizendo algo como "mocinha" para o indiferente Jack North enquanto se afastava para atender à demanda.

Assim esses homens gastaram algum tempo, como gastavam, algumas vezes por semana. O servente tétrico acendeu as luzes e abriu a porta do bar que, para os habitantes de Pequena Kansas City, não passava de um simpático pub temático de rock n’ roll, algo que podemos confirmar ser a mais pura verdade. Ali também começaram matrimônios e amizades perenes. Assim alguns casais começaram a entrar, bem como cidadãos egressos do trabalho, que se dirigiam às mesas de bilhar. Em determinado momento, Jack North considerou satisfatória sua cota de chopp. Pagou a conta e a filosofia de boteco. Barba contou as notas, satisfeito em não mais precisar perguntar sobre o troco. Entre os dois havia uma combinação tácita: o troco era da casa. Jack North dirigiu-se cambaleante para a saída.

***

A noite abraçava fria, mas Jack North se atolava na lama da bebida. Como a um autêntico filho eslavo, o álcool lhe esquentava o sangue. Tropeçou na lixeira e voltou a equilibrar-se no meio-fio. Um automóvel desviou, buzinando, e o nosso bêbado xingou. Andou alguns quarterões e sentou-se na calçada. A meio caminho de casa, a cidade já não possuía iluminação, mas a lua brilhava e ele não precisou acender o toco de vela que sempre carregava consigo. Puxou um pacote com fumo do bolso, que passou a enrolar desajeitado em um papel de seda amassado que retirou do mesmo bolso. No outro bolso do sobretudo achou um cantil com aguardente, sacou-lhe a tampa e tomou um gole copioso. Gastou cinco fósforos para acender o cigarro, e a rua de terra recendeu o cheiro de cânhamo queimado.

Jack North levantou-se Deus sabe como, e seguiu seu caminho. Bastava atravessar o horto e talvez em uns vinte minutos estivesse em casa. Então passou a cantar em voz bem alta (morava em área despovoada, e nunca lhe atiraram um sapato velho como em um gato importuno). Cantou músicas católicas, presbiterianas, populares, rock'n roll, polcas, tangos, mambos, sambas e Puccini. Em um dado momento, parou e pôs-se a recitar para a floresta que lhe era quase indiferente, exceto por uns quatis, sapos e grilos que lhe faziam fundo musical:

- O vinho acabou-se nos copos, Bertran, mas o fumo ondula ainda nos cachimbos! Após os vapores do vinho, os vapores da fumaça! Senhores, em nome de todas as nossas reminiscências, de todos os nossos sonhos que mentiram, de todas as nossas esperanças que desbotaram, uma última saúde! A taverneira aí nos trouxe mais vinho: uma saúde! O fumo é a imagem do idealismo, é o transunto de tudo quanto há mais vaporoso naquele espiritualismo que nos fala da imortalidade da alma! E pois, ao fumo das Antilhas, à imortalidade da alma!

Recitava e cantava para o vazio, profundamente comovido. Relinchava, bestialmente: "Fernandos Pessoas e Bocages e Álvares de Azevedos e Machados de Assis! É assim que ao homem educaram? Afinal, não eram homens, vós também?". E ria um riso amargo de Fernet, um riso cansado e fracassado, um riso demasiado humano.
- Jack North! - parecia-lhe ouvir alguém gritando. - Jack North! - a voz a princípio se confundia com o sussurro do Zéfiro que balançava a folhagem.
Cantava e chorava o bêbado. Em determinados momentos, gritava:
- Transformando vícios em virtudes e virtudes em vícios! Descendentes de alquimistas!
- Jack North, espere!
Um vento mais forte sibilou em seus ouvidos por segundos, e um macaco gritou em uma árvore próxima, camuflando outro grito:
- Jack North!!!
- Solidão é lava, amiga do peito...
Quando sentiu uma mão pousar sobre seu ombro, estremeceu. Uma voz suave quase simultaneamente procurava acalmar seu sobressalto:
- Calma, Jack. Sou eu, Sylvia.
Jack North desabou sobre os joelhos, sujando suas calças no barro úmido da rua. Gritou:
- Filho, onde está teu irmão?! Onde você estava? - e passou a chorar, como um personagem de romances russo fosse, porque tinha motivos, como os românticos russos e os do Império Romano do Oriente:
- Vem com o acatamento devido à presença de Vossa Excelência...
- Calma, Jack - Sylvia pôs-lhe as mãos nos ombros, suave, convidando-o a se reerguer. - Sou eu, Sylvia.
- Ela foi embora e levou os dois...
- Que dois?
- Minhas crianças!
Sylvia permaneceu em silêncio mirando o infeliz, com os olhos marejados refletindo o brilho da lua.
Jack North se reaprumou, levantando-se penosamente:
- Sylvia, o que faz aqui?
- Você esqueceu seu cachecol - e ajeitou o vestuário maternalmente sobre os ombros do infame - vamos. Eu deixo você em casa. Vai pegar um resfriado.
- Sylvia, o que está fazendo aqui, sua casa...onde...onde fica...o quê...
- Vamos, Jack. Não se preocupe. Vamos, querido...
Jack North beijou a imagem que levava ao peito e calou.
Subindo pela rua que ladeava o Horto, Sylvia pousava sua mão leve sobre o ombro de Jack North. As botas de ambos afundavam no barro úmido, participando de uma sinfonia de instrumentos que se rivalizavam, como a música das cordas dos animais da noite confundindo-se com as botas que percurtiam o ritmo preenchido pelo suave carinho produzido pelo Zéfiro sobre as folhagens que gotejavam. Jack North parou e levantou a mão, como quem pede silêncio. Sylvia parou. Um macaco gritou e Jack North retomou a cantar como os bêbados cantam.
Recomeçaram a caminhar.
Em algum momento, a lua voltou a aparecer por entre as copas e iluminou o  casal; Jack North pôde ver Sylvia como nunca vira. Em seu rosto branco piedoso iluminado pela lua, o sorriso mais belo que ela jamais esboçara. Um vento forte começou a soprar; um estranho som por detrás das folhas. Jack North estremeceu um calafrio e passou a ter uma visão assustadora. As copas das árvores se abriram, e um grito agudo, inumano e aterrador trouxe-o como de volta do mundo dos ébrios. Uma gigantesca águia surgiu por entre as folhas, voando em direção a eles. Sylvia gritou. Com garras enormes como grandes pás de moinho, o gigantesco pássaro agarrou Sylvia e levou-a para os céus, qual fosse um filhote silvestre, enquanto Jack North corria tentando alcançá-la, aos gritos:
- Sylvia!!!
***
Levantou-se abruptamente, banhado em suor. Então, tudo não passara de um sonho? Jogou para fora da cama o cobertor e percebeu que estava ainda vestido como saíra do trabalho no dia anterior. O barro das botas e dos joelhos endurecera e sujara a cama. Ao lado, sobre a mesa, o cachecol. No chão o toco de vela. Amaldiçoou a bebida e puxou o cantil do bolso. Estava vazio. Acendeu a vela sobre a mesa, onde iluminou-se um porta-retrato que exibia a foto de duas crianças sorridentes. Colocou fogo na lenha do fogão e a água para esquentar. O sol ainda não havia surgido no horizonte. Encheu a bacia de banho, misturando a água fervida, descalçou as botas e desvestiu as roupas, ali mergulhando por alguns minutos. Havia no bule um pouco de café do dia anterior. Usou o resto da brasa para aquecê-lo. Esfregou um pedaço velho de pão preto em um pote quase vazio de uma manteiga rançosa e comeu. Achou alguma roupa que dissimulasse o frio, limpou um pouco as botas e dirigiu-se ao escritório Bertoni, enrolando no pescoço o cachecol. Parou diante do porta-retrato, admirando com ternura a imagem das duas crianças. Quanta bondade houve nele, em tempos mais felizes e menos solitários! Bondade há muito quase esquecida, e que lhe foi relembrada pelo reflexo lunar nos olhos daquela mulher que o auxiliou a se levantar do genuflexo lamacento e patético, ajeitando sobre seus ombros o cachecol, com um carinho que Jack North pensava não mais existir.
E batendo atrás de si a porta da pequena casa de madeira que habitava no meio do nada, sem preocupação em chaveá-la, viu que o sol começava sua pretensão de nascer no horizonte.
Na porta de casa, agachou-se e recolheu um pequeno objeto no assoalho. Era um brinco. Sylvia.
***
Aqui ficamos sabendo que Jack North abandonou Pequena Kansas City. Sylvia não foi trabalhar no dia seguinte. Nem na semana posterior. Ninguém no escritório ou na cidade sabia onde ela morava. Durante uma semana, procurou-a. Ele já não chegava pontualmente; na terça-feira o Sr. Bertoni havia arrumado uma nova secretária, amaldiçoando a "criatura obesa", e exortava Jack North a pensar em sua carreira, mas ele simplesmente abandonava o trabalho a qualquer momento para percorrer todas as vilas ciricunvizinhas, em busca daquela mulher. Não, ninguém a conhecia. O office-boy não sabia onde morava. O Barba não se recordava de moça alguma com um cachecol. Era como se Sylvia jamais tivesse existido, a não ser para ele. Jack North não se lembrava do que de fato ocorrera naquela quinta-feira. Amaldiçoava o vício, a incúria e o niilismo. Durante a semana seguinte, em que permaneceu na cidade, bebia e comportava-se como um enlutado irremediavelmente mórbido. As crianças jogavam pedras nele e ele às vezes dormia na porta da igreja. Os habitantes da pequena cidade começaram a tratá-lo como a um alienado. Diziam entre si que Jack North enlouquecera; vivia sujo e roto. Na sexta-feira, comunicou ao Sr. Bertoni que estava abandonando a cidade; o velho italiano o cobriu de impropérios e colocou-o para fora do escritório aos chutes. As crianças da rua riam dele, cuspiam-lhe e gritavam-lhe infâmias, diante das quais permanecia impassível.
Jack North deu baixa em todos os seus negócios antes de partir, alegando uma melhor oportunidade de trabalho em Xangai ou Mumbai, ninguém na cidade se recorda bem. Foi visto embarcando no trem com duas valises e um cantil à mão, e nunca mais se ouviu falar nele. Sua última providência, antes de partir, foi uma doação à igreja. Confessou-se e pediu a benção ao padre, com quem havia tomado vinho algumas vezes, discutindo alegremente a escolástica, nos findos anos em que vivera como um cidadão respeitável em Pequena Kansas City.
Naquela época, eu não passava de um office-boy.


3 comentários:

Unknown disse...

Ainda não comentei...

Opinião pessoal: Adorei
Opinião profissional: Muito bom, você tem muito talento. Explore!

P.S: Quero ser a Bibliotecária responsável pela catalogação na fonte rs. Que chique você heim, uma Bibliotecária, Advogada só pra você hahahaha

Sucesso.

Beijos

Unknown disse...

Ainda não comentei...

Opinião pessoal: Adorei
Opinião profissional: Muito bom, você tem muito talento. Explore!

P.S: Quero ser a Bibliotecária responsável pela catalogação na fonte rs. Que chique você heim, uma Bibliotecária, Advogada só pra você hahahaha

Sucesso.

Beijos

Leila Rocha disse...

😉sucesso
Deus o abençoe🤲