19.6.14
ABSINTO E GRANADINE XII - O VELHO E SEU CHARUTO
Sentado em sua poltrona favorita, espreguiçou-se delicadamente e endireitou a espinha, empertigando-se. Hirto, acendeu seu charuto. O repórter ficou no sofá, caneta em punho, impressionado com o porte marcial adotado por seu entrevistado, não obstante estar comemorando seus cem anos de vida, razão pela qual a entrevista exclusiva lhe era uma grande certeza de incrementar o currículo, já não tão pobre.
Na verdade, este nosso repórter não tinha muita certeza sobre como conduzir a coisa, nunca entrevistara nenhuma personalidade a completar cem anos, quiçá qualquer pessoa com cem anos, que diria de um grande autor como aquele, um homem consagrado e célebre ainda em vida.
O velho, que nem por isso deixava de ser o mais comum dos velhos, depositou a cinza do charuto no cinzeiro que, segundo ele, pertencera a Fulgêncio Batista, e que fora furtado por Guevara, e a Guevara por Fidel, e a Fidel por uma centena de outros punguistas, até chegar a ele.
O repórter entendeu a intenção do anfitrião de que a conversa se desse de maneira informal. Acomodou-se melhor na poltrona, posicionou melhor o gravador e empunhou melhor seu bloco de notas, que aliás tinha como capa a célebre foto de Guevara, tomada por Alberto Korda. Bem acomodado, iniciou a sessão de perguntas.
- O que o senhor acha da situação atual?
- Atualmente, minha senhora plantou uma muda de melissa ali naquele vaso - e apontou com a mão trêmula - durante uns dias ficamos em expectativa: será que a pequena muda vingaria? Eu já fui aquela pequena muda. Agora, não sou mais - e tragou seu charuto, que no entanto se havia apagado - essa é a situação atual. Nossa pequena muda vingou. Nós, talvez...sob certo ponto de vista, posso dizer que vingamos.
"Individualista", anotou apressadamente o repórter, que deveras não havia vingado.
-É certo que não me lembro de muitas coisas - prosseguiu o velho, desta feita acendendo o charuto e tragando com um vigor insuspeitado.
O repórter riscou a palavra que havia escrito, denunciando a si mesmo a precipitação de seu juízo. Era jovem e tinha pressa. Facilmente, se perdia em meio às palavras.
- Mas a questão política - perguntou por fim o repórter - o senhor que esteve em meio a tantas polêmicas, convenhamos, há muita polêmica hoje...
- A polêmica, ah, a polêmica...houve muitas, e terminaram, e novas começaram, e após o seu término o mundo ficou melhor ou pior, conforme a direção que tomou, levado pela resultante de tantos e incontroláveis vetores, e os polemistas morreram, alguns melhor, outros pior amparados pela verdade - e olhou para o repórter - a polêmica é o peido da eternidade, escreve aí - e pôs-se a gargalhar gostosamente, a ponto de alarmar o repórter, que achou que o velho iria engasgar.
- Bem - prosseguiu o repórter a um gesto do anfitrião de que ele deveria prosseguir - a metafísica da sua obra...
- A metafísica da minha obra é a do Esteves. Não que eu negue a metafísica no sentido de que ela se manifesta, está aí desde sempre, nós a denominamos "metafísica", mas não como o "a priori" de Kant, e sim como a afirmação do além-do-homem, não nietzschiano, mas transcendente. Isso sempre me perturbou, mas muito mais em minha juventude. Deus sempre esteve em meus pensamentos, e não poderia ser diferente. Realmente, quem matou Deus, esqueceu de cortar-lhe a cabeça e trazê-la para que todos testemunhássemos seu assassinato. Então ficamos assim. Prefiro Deus a D. Sebastião.
Um breve momento de silêncio preencheu o ambiente. O velho sorria e tragava seu charuto, como que tentando encorajar a imaginação do entrevistador.
- O médico do senhor não briga por fumar tanto?
O velho tragou a tragada mais profunda da tarde, e completou com uma bela talagada no vinho do porto que sua senhora lhe havia servido com a gentileza de que só os velhos amantes são capazes:
- Impossível. Meu médico está morto.
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3 comentários:
Ahhh... adorei a parte da melissa!
peculiar , senhor Keslarek , Peculiar!
de fato, ninguém trouxe a cabeça Dele pra provar. Ato - contínuo,hoje temos o Bolsanaro e o Estado Islâmico.
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