4.3.14

ABSINTO & GRANADINE - Jack Keslarek - Registro


REGISTRO


Registro histórico. Um botequim. Um bairro pobre. Um vento lábil sob um céu azul brilhante de abril. Uma sexta-feira, feriado de algum calendário panteísta-científico-católico, e um homem extremamente laico caminha por uma avenida neste lugar meio civilizado. Somos pobres, mas somos meio limpinhos.
Bebo muito e leio devagar as notícias do dia, pulo algumas palavras e às vezes tenho que voltar um pouco e recuperá-las como reses fugidias. Todos esses adjetivos me deixam perplexo, e procuro me livrar deles.
Registro histórico. Leio o jornal, encostado no balcão de um bar, sentado sobre um banquinho, um tanto atingido pela lequéssia, bambo como se estivesse sentado naquela cadeira do brinquedo do parque, que quebrou (parque, brinquedo, cadeira e eu), afinal dá muito trabalho ser o Esteves sem metafísica.
Sou um kafkaniano, então, se me perdoam o odioso adjetivo. Na posição de kafkaniano, não me posso permitir partidarismo que não seja anárquico, idiossincrático, profundamente pessoal e, com isso, completamente eivado pelo vício da democracia, como diz Voltaire, pode falar suas besteiras à vontade que eu não sou de direita nem de esquerda, sou de baixo e estão todos em cima de mim.
Ocorre que Sir Joseph K. anda por entre nós, inclusive em nossos erros gramaticais ou em nossos momentos de sensível sabedoria infantil. Como bestas que somos, recusamos aceitar que o somos.
Então o bar começa a se tornar ruidoso, e à minha rude figura meio limpinha são apresentadas rudes figuras. Nós, rudes, quase não sabemos tomar intimidades que não passem pela agressão, sendo fácil distinguir-nos:
- E aí, seu viado!
- Fala, bâmbi!
Odeio adjetivos!
A raiva cresce conforme estaciona um jipe sofisticado, do qual sai uma figura com atitude estúpida, batendo no balcão do bar e pedindo uma dose de caninha 51 com limão. O cuidado que ele parece ter com o carro não se aplica à sua figura terrivelmente inculta e decadente. De dentro do veículo, um desagradável barulho alto pretende-se música, e eu não deixo de me impressionar como neste país, que é pobre, até a escória está andando em carrões, com o quê só crescem os atropelamentos de inocentes, principalmente as crianças descalças e sem camisa, das quais os necrotérios municipais estão cheios, e os lucros das multinacionais que matam chineses a dois dólares o dia para que idiotas e retardados de idade mental impúbere tenham carros e outras porcarias eletrônicas no Brasil.
A raiva cresce quando as moscas pousam sobre minha cabeça privilegiada, achando que eu não passo de um torresmo cru, delícia meio nordestina, meio polonesa, um apetitoso banquete que fazem as moscas com o sebo da minha testa, cultivado pelo clima de trópico que procuro aplacar jogando uma água no rosto.
Estes sujeitos, que sempre parecem saídos de tavernas primitivas, depois mesmo de velhos, prosseguem como Bocage em incultas produções, achando-se sábios e espertos até o solo sobre suas carcaças verdejar, sobrevindo todos como bom e pretensioso pedaço de adubo.
Aqui temos o paradigma do brasileiro. Há o adubo esperto e o adubo estúpido, todos férteis e nenhum renegado pelos vermes.
Registro histórico.

3 comentários:

Pierre Angélico disse...

Keslarek condômino voluntário do Inferno,
Um fio de ternura indestrutível tal qual o amor de Beatriz
Te acompanha nas profundezas

Jack Keslarek disse...

Sim, Beatriz. É o amor de uma mulher, como o amor da verdade.

Anônimo disse...

Gosto muito do que você escreve, você parece ter ultrapassado o retorno de qualquer caminho conhecido, e seguiu com força e violência um caminho do não-caminho, do não-saber e da não-saída, e deixando para trás um ruído que não há como não notar:

Escreve como um ser bastante livre, sem se aprisionar em símbolos, teorias, o que quer que seja.

Eu estou neste blog (os poemas estão entre novembro de 2008 e março de 2009):

http://elizabethmydear.wordpress.com/