REGISTRO
Registro
histórico. Um botequim. Um bairro pobre. Um vento lábil sob um céu
azul brilhante de abril. Uma sexta-feira, feriado de algum calendário
panteísta-científico-católico, e um homem extremamente laico
caminha por uma avenida neste lugar meio civilizado. Somos pobres,
mas somos meio limpinhos.
Bebo muito e leio
devagar as notícias do dia, pulo algumas palavras e às vezes tenho
que voltar um pouco e recuperá-las como reses fugidias. Todos esses
adjetivos me deixam perplexo, e procuro me livrar deles.
Registro
histórico. Leio o jornal, encostado no balcão de um bar, sentado
sobre um banquinho, um tanto atingido pela lequéssia, bambo como se
estivesse sentado naquela cadeira do brinquedo do parque, que quebrou
(parque, brinquedo, cadeira e eu), afinal dá muito trabalho ser o
Esteves sem metafísica.
Sou um
kafkaniano, então, se me perdoam o odioso adjetivo. Na posição de
kafkaniano, não me posso permitir partidarismo que não seja
anárquico, idiossincrático, profundamente pessoal e, com isso,
completamente eivado pelo vício da democracia, como diz Voltaire,
pode falar suas besteiras à vontade que eu não sou de direita nem
de esquerda, sou de baixo e estão todos em cima de mim.
Ocorre que Sir
Joseph K. anda por entre nós, inclusive em nossos erros gramaticais
ou em nossos momentos de sensível sabedoria infantil. Como bestas
que somos, recusamos aceitar que o somos.
Então o bar
começa a se tornar ruidoso, e à minha rude figura meio limpinha são
apresentadas rudes figuras. Nós, rudes, quase não sabemos tomar
intimidades que não passem pela agressão, sendo fácil
distinguir-nos:
- E aí, seu
viado!
- Fala, bâmbi!
Odeio adjetivos!
A raiva cresce
conforme estaciona um jipe sofisticado, do qual sai uma figura com
atitude estúpida, batendo no balcão do bar e pedindo uma dose de
caninha 51 com limão. O cuidado que ele parece ter com o carro não
se aplica à sua figura terrivelmente inculta e decadente. De dentro
do veículo, um desagradável barulho alto pretende-se música, e eu
não deixo de me impressionar como neste país, que é pobre, até a
escória está andando em carrões, com o quê só crescem os
atropelamentos de inocentes, principalmente as crianças descalças e
sem camisa, das quais os necrotérios municipais estão cheios, e os
lucros das multinacionais que matam chineses a dois dólares o dia
para que idiotas e retardados de idade mental impúbere tenham carros
e outras porcarias eletrônicas no Brasil.
A raiva cresce
quando as moscas pousam sobre minha cabeça privilegiada, achando que
eu não passo de um torresmo cru, delícia meio nordestina, meio
polonesa, um apetitoso banquete que fazem as moscas com o sebo da
minha testa, cultivado pelo clima de trópico que procuro aplacar
jogando uma água no rosto.
Estes sujeitos,
que sempre parecem saídos de tavernas primitivas, depois mesmo de
velhos, prosseguem como Bocage em incultas produções, achando-se
sábios e espertos até o solo sobre suas carcaças verdejar,
sobrevindo todos como bom e pretensioso pedaço de adubo.
Aqui temos o
paradigma do brasileiro. Há o adubo esperto e o adubo estúpido,
todos férteis e nenhum renegado pelos vermes.
Registro
histórico.
3 comentários:
Keslarek condômino voluntário do Inferno,
Um fio de ternura indestrutível tal qual o amor de Beatriz
Te acompanha nas profundezas
Sim, Beatriz. É o amor de uma mulher, como o amor da verdade.
Gosto muito do que você escreve, você parece ter ultrapassado o retorno de qualquer caminho conhecido, e seguiu com força e violência um caminho do não-caminho, do não-saber e da não-saída, e deixando para trás um ruído que não há como não notar:
Escreve como um ser bastante livre, sem se aprisionar em símbolos, teorias, o que quer que seja.
Eu estou neste blog (os poemas estão entre novembro de 2008 e março de 2009):
http://elizabethmydear.wordpress.com/
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