20.10.16

O MORDOMO DE SI DURANTE O CHÁ DAS CINCO




- Quer café, senhor?
- Sim, obrigado.
Assim o homem se oferecia a si mesmo o café, e ele mesmo aceitava.
- Ainda temos café.
- Graças a Deus.
Assim o homem falava sozinho nesse diálogo.
- Sabe você, estou tomando um novo remédio.
- Mas falar isso para mim é tautologia...não me impressiono. Estou tomando esse remédio também.
-Mais açúcar?
- Adoçante, obrigado.
- Está chorando?
- Não, é apenas terçol.
...

- Quais as novas?
-Sabe, andam dizendo que estou doente, mas é apenas fastio, falta de significado.
- Também anda bebendo demais...
- Sim, mas não todos os dias.
...

- Gosto muito de poesia...
- Acho uma merda. Coisa de desocupados.
- Você está doente.
- Pode ser. Mas você não é médico. E nem um médico com seu pedaço de papel pode dizer sobre doenças que não vê. Talvez seja apenas o declínio natural da vida.

...

- Por que não pede ajuda?
- Porque não preciso.
- Mas você me parece doente...
- Você também. São esses remédios que anda tomando.
- O remédio é bom.
- Ótimo. Você não faltava ao trabalho antes deles.
- Tiram a ansiedade,
- Prefiro o pai-nosso.

...

- Disseram que você é muito grosseiro.
- Sou mesmo.
- Você poderia ser mais suave.
- Você poderia não encher o saco.

...

- Disseram que você é escritor...
- Não sou.
- Eu li o que você escreveu. É bom.
- Grande coisa. Eu trabalho na fábrica de tijolos. Escritor é profissão. Eu nunca recebi um centavo por isso. Então não sou escritor.
- Mas você escreve bem.
- Que bom que gosta. Se precisar de tijolos, compre comigo.

...

- Você está gravemente enfermo.
- E você está gravemente idiota.
- Não precisa ofender.
- Você começou.

...

- Bom, está na hora de ir.
- Leve o seu Chico Buarque.
- Mas eu trouxe pra você ouvir.
- Não gosto. Aliás, não gosto de você.

...

- Tenha um bom dia, estou indo. Precisando me fale.
- Preciso que você vá embora.
- Você está doente. Deve ver um médico.
- Você é medico?
- Não.
- Então vá embora, não encha o saco e feche a porta. Da próxima vez que vier, faça o favor de avisar.

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