30.6.14

O VELHO E O BLUES



Ele estava sentado na pedra enrolando seu fumo de palha. Teve uma vida simples, mas movimentada.
Eu tinha apenas cinco anos, mas ele era meu herói. Gostava quando franzia o cenho, exibindo suas severas rugas. Era um homem muito sério, mas eu ria a valer quando pegava aquele seu violão velho e começava a arranha-lo:

"I'm a maaaan!"

Ele sempre tocava aquela do Muddy Waters. "I'm a hoochie coochie man. Maaaaan!"

Depois encostava o velho violão para filosofar. Em um mundo de idiotas, distorcendo a realidade e quiçá as próprias palavras ditas, aquela convivência com ele me faz pensar hoje como eu era bem-aventurado. Porque desde aquela época, eu era uma criatura que não admitia a falta de sentido nas palavras.

Ele sempre cuspia como um sertanejo antes de lamber a palha com que pacientemente esculpia seu cigarro, embora só tivesse ido morar no mato depois de velho. Era um estudioso indisciplinado. Levou uns livros com ele, mas sempre se lembrava das lições de seu pai e de um professor, ambos homens a quem devia o fato de ser o homem que era naquele momento. Não que ele fosse grande coisa - dizia - mas deus o livrasse de não haver recebido as lições de seu pai e de seu professor estimado, e não só seria um homem mau, mas estaria muito encrencado.

É verdade que não me lembro bem de suas palavras. Não se pode dizer que não chorava. Chorava um choro amargo, e sempre lembrava da mãe e da família toda. Algumas de suas falas estão fixas em minha mente.

Ah, mas acho que não posso sair por aí falando o que meu vô me dizia. Sempre tem alguém que se ofende e acaba tentando te ofender. Nós estamos muito divididos agora e não somos apenas seres humanos, somos categorias dialéticas, somos propriedades da linguagem programada.

Meu avô falava muito de pretos, de índios, de espanhóis, poloneses e judeus, até onde sabia, o coquetel genético de onde saíra, mas gostava preferencialmente de esculachar a juventude. Porém às vezes se cansava de falar aquilo para um garoto de cinco anos e retomava o violão:

"I'm a maaaaaan!". Acho que fazia isso porque eu ria até os estertores. Ele tocava Muddy Waters porque eu gostava.

"Menino. Eu já fui menino. Não tenho inveja da juventude. Não sinto saudade. "

"But now I'm a man, way past 21
Want you to believe me baby,
I had lot's of fun
I'm a maaaaaan!".

Eu não entendia nada e ria, e meu avô ria comigo. Nós engasgávamos de tanto rir.

Às vezes ele parava de tocar para dizer: "que grande idiota o cara que escreveu isso!", e punha-se a rir, e eu ria com ele, "sim, que grande idiota", eu não entendia nada, mas entendia muito bem que o cara era um grande idiota.

Meu avô, tentando ficar sério, dizia que a idiotice do cara era normal, porque era jovem, mas eu replicava que na capa do disco que ele tinha Muddy Waters era velho, e vovô explicou que também Muddy Waters tinha sido jovem, e punha-se a rir gostosamente; eu ficava um pouco triste, porque achava que velho era velho e jovem era jovem, mas não resistia ao riso do vovô e punha-me também a rir.

- Mas você também foi jovem, vovô?

No começo eu perguntava a sério, mas hoje talvez eu repetisse, apenas para vê-lo rindo.

- Mas você também foi jovem, vovô?

Quarenta anos se passaram. I'm a man.

Jack Keslarek. Absinto e Granadine XIV.

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