29.10.14

ESCRITO SURREALISTA




- Alguns dos meus amigos mais simples sabem ler melhor do que alguns dos mais estudados. Basta conhecer o sentido das palavras e o que elas representam no mundo real. Mas alguns dos meus amigos mais simples têm mais amor pelo conhecimento e pela verdade do que alguns dos meus amigos mais estudados.

A moça simplesmente não se interessava no que o rapaz falava. Tomava seu sorvete de açaí e acariciava seu bichano, de maneira frívola. Ela era praticamente um bichano, até em seus verdes olhos.

Enfastiou-se o rapaz, e empertigou-se:

- Não adianta falar. Todo mundo peidou e não foi ninguém...

A moça de olhos verdes peidou. Fedido.

O rapaz reagiu ao peido:

- Vou transformar teu peido em poesia...

- Duvido. Não vale.

- É verdade, eu não sei escrever. Sou o Elói da máquina do tempo de H.G Wells. Sou a acrobacia lógica de Bertrand Russell. Da matemática à inexistência da metafísica! Sem intermediários.

Virou-se e dormiu. Teve sonhos nem freudianos, nem bretonianos, nem salvadordalinianos. Aliás, sonhou que Dali foi expulso do surrealismo e morreu miseravelmente louco.

O moço gritou a noite inteira, em seus sonhos.

A moça peidou muito naquela noite.

17.10.14

ABSINTO E GRANADINE: EU NÃO ABRAÇO QUEM EU NÃO CONHEÇO




Apareceu do nada um cara barbudo. Ele era jovem, do tipo descolado e com uns cortes estranhos e irregulares no cabelo. Da tatuagem, eu nem falo. Tatuagem é tão carne-de-vaca que qualquer puta velha, que eu comi quando era nova, tem. Isso significa que eu também já fui novo. O problema não era nada disso. Eu não fiquei com medo. Fiquei desconfiado. O cara não tinha cara de quem queria me dar um abraço.

Ocorre que o cara me pediu exatamente isso. O cara queria me abraçar e perguntou: "você pode me dar um abraço?". Olhei para a cara dele e disse a mim mesmo: 'esse filho de uma puta não quer me abraçar porra nenhuma!'.

Mas eu tenho experiência. Então perguntei a ele: 'posso pensar?' Nesse momento, seu olhar sofreu uma transmutação. Pareceu-me um olhar perplexo, de quem não lembrava daquela fala no roteiro, de quem se achava muito bom ator e nunca pensou em filosofia. Esse safado definitivamente não queria um abraço.

O cara me esperou pensar por uns dois minutos e meio e, com ar impaciente, perguntou: "e aí? Decidiu?".

"Não, ainda", respondi. "Não posso te dar um abraço falso. Não sei se meu abraço é falso ou verdadeiro. Você pode me explicar o motivo pelo qual você quer um abraço? Se o Corinthians ganhou, não vou querer te abraçar, pois quando o Corinthians ganha fico chateado e não quero abraçar ninguém. Se você acertou na sena, te abraço e pago um almoço pra você'.

O cara parecia não acreditar no que ouvia. Passou a sacudir a cabeça de um lado para outro, desorientado.

Então, passou-se o seguinte: o cara se cansou e disse que era apenas um ator, que se chamava J. e trabalhava para a empresa B., que pertencia a F., que era ligado a uma ONG financiada por uma fundação, que por sua vez era ligada ao governo de X, em um dos três âmbitos do estado onde ficava a vila de Kansas City, no interior de Dubai, subúrbio de Kiev, próximo a Putin e Les Miserables e San Fidel. Disse mais: ele era um ator engajado, mas estava desempregado e, para arrancar uns caraminguás, para comprar um fumo e levar a mina pro Motel, pegou esse trabalho de encenar um vídeo que provasse que as pessoas não gostam de abraçar.

Então eu disse que não, obrigado, não o abraçaria, e fui seguir meu caminho.

Quando olhei para trás, ele estava abraçando mendigos, rápida e separadamente, com cara de asco. Eu sorri, é verdade, um sorriso meio triste que já me caracteriza, estava um pouco desconsolado, pois tinha certeza que os mendigos não receberiam seus direitos de imagem, em dinheiro, nem de J., nem de B., nem de F, nem da ONG, nem da fundação, nem do governo.

Alguns dias depois, vi o vídeo com o cara no "Face". Lembrei-me de sua face. Não que o cara não merecesse um abraço. Acho que ele nem queria.

Pensei: "vivendo neste lugar, nesta época, quem precisa de Cem Anos de Solidão?"

12.10.14

GROUND CONTROL TO MAJOR TOM



Cerveja à mão. Quatro, três, duas da manhã. Hipócrita fácil.  Qualquer um que lhe passasse a mão, naquele momento o levaria. Mais uma vez lhe foram mandados anjos. "Major Tom to ground control".

Cambaleou e demorou a achar o buraco da fechadura.

Aquela voz ecoava em seu cérebro sobrecarregado: "may God's love be with you".

Naquele momento, nada a fazer acerca do planeta azul.

Até fora da atmosfera os erros o acompanhavam.

Estava longe. Isso não era agradável.

Talvez um dia voltasse.

Afinal, estava sempre sendo trazido de volta à Terra.

8.10.14

O SECRETÁRIO



Naquele enterro, não havia testemunhas, exceto uma.

"Morreu solitário e esquecido. O funeral foi acompanhado pelo secretário, única testemunha dos últimos dias."

Ali está, até hoje, para quem quiser encontra-lo. Sem emoção.

Uma interessante personagem. Saquem seus celulares, fotografem seu túmulo. Desconhecem até coisas conhecidas: humanidade.

O dígito binário.

Naquele enterro, havia uma testemunha.

E o caixão de Gottfried descia.

Sua máquina de calcular calculava computadores.

Seu cálculo moral era o amor.

E o caixão de Gottfried descia.

Seu secretário tirou o chapéu, respeitosamente.

E todo o conhecimento ainda era menor, assim como hoje.

E o caixão de Gottfried repousou modestamente junto ao solo.

E nós, nada tendo aprendido com o conhecimento.

Nós nos consolamos na ignorância sem consolo.