29.7.16

A CHALEIRA


A água começou a ferver.

"Noventa e cinco anos",  pensou, "e, qual! Ainda quero me enfeitar com laços e fitas!". Acendeu o cigarro de palha que o neto lhe havia dado e tragou, sem tossir. A chaleira fervia na boca da lenha e ela andou com os pés inchados e aquele chinelo de dedo, lentamente, em direção ao cinzeiro. A cinza não esperou e deixou-se cair ao chão.

- Merda!

O filho havia prometido vir para o café, tinha um filho, outros dois morreram, como o marido. Voltou-se para o forno, e retirou o bolo. Era forte, mas a forma escapou-lhe das mãos, espatifando-se.

Sentou-se em seu banquinho preferido, igual ao do Raul Gil. Lembrou-se do marido a picar fumo.

A água do café fervia, mas ela sentia algo diferente. Olhou para a chaleira preta, e considerou bem há quantos anos possuía aquela chaleira que serviu a tantos amados que vira partir.

"Chegou a minha hora", pensou, e morreu apenas pendendo a cabeça para um lado.


Nenhum comentário: