29.7.16

A CHALEIRA


A água começou a ferver.

"Noventa e cinco anos",  pensou, "e, qual! Ainda quero me enfeitar com laços e fitas!". Acendeu o cigarro de palha que o neto lhe havia dado e tragou, sem tossir. A chaleira fervia na boca da lenha e ela andou com os pés inchados e aquele chinelo de dedo, lentamente, em direção ao cinzeiro. A cinza não esperou e deixou-se cair ao chão.

- Merda!

O filho havia prometido vir para o café, tinha um filho, outros dois morreram, como o marido. Voltou-se para o forno, e retirou o bolo. Era forte, mas a forma escapou-lhe das mãos, espatifando-se.

Sentou-se em seu banquinho preferido, igual ao do Raul Gil. Lembrou-se do marido a picar fumo.

A água do café fervia, mas ela sentia algo diferente. Olhou para a chaleira preta, e considerou bem há quantos anos possuía aquela chaleira que serviu a tantos amados que vira partir.

"Chegou a minha hora", pensou, e morreu apenas pendendo a cabeça para um lado.


25.7.16

SPAM

O ser dormente diz: "acorde!" Eu acho de um disparate, quase lhe dou um tapa. - Spam! - Eu grito, mas ele me informa que é uma velhinha de noventa e nove anos que usa contraceptivos. Tenho que ser mais respeitoso.

Homens estranhos começam a sair do meu banheiro, dizendo que a casa é comunitária, mas apenas eu pago o aluguel. Fico nervoso e começo a retirá-los aos tapas, mas eles são mais fortes do que eu. Ameaço com polícia, mas um deles vem e se identifica como sargento.

Vejo algo escrito "Venezuela" ou "Cuba" ou "Obama" e alguém grita "Allah hu akba".

Acordo suado. É apenas febre.  O vírus pisca na tela e a energia cai.


10.7.16

PARESTESIA



Sentado não estava bom. Em pé também não. "Não ganha a sua criação com o suor do rosto - ela ali está, à porta, esperando para ser despertada ao primeiro contato com a dura realidade. É o sofrimento que ele tem que cultivar, não a virtuosidade do maestro".

Essa efígie de Henry Miller o perseguia quando retirou o livro da prateleira e o devolveu, e depois o procurou de novo, mas ele não estava mais lá, por mágica, até que no outro dia ele descobriu que tinha largado o livro sobre a escrivaninha e não o devolvera à prateleira. Era "O Tempo dos Assassinos", mas ele definitivamente não era Rimbaud nem Henry Miller, nem Billy Corgan nem Silvio Santos, mas era ele, ele mesmo, por graça e circunstância.

E por quê raios deixou a boca do fogão ligada se não ligara a boca do fogão ou não se lembrava de havê-lo feito? Cheirou o gás e correu a apagá-la, as portas estavam abertas.

Queria muito fumar, mas ficou com medo.

Esperou trinta minutos e acendeu um cigarro.

A casa não explodiu. As pernas lhe coçavam.

4.7.16

Síncope



Ele preferia ter desmaiado. Mas foi obrigado a permanecer em vigília, em seu surto despejou toda a dor sobre as garrafas que insistiam em sua inércia abruptamente interrompida a golpes de desespero. Perdão, perdão. Por favor, ele não cometeu o pecado, ou cometeu? Não sabia.

Não era resiliente, não era manso, não era suave, era um bruto daqueles que despejam sobre si mesmos a cólera incontida. Mas palavras são só palavras e cacos de vidro, esses sim cortam como o silício que não expia, mas parece inútil, no entanto, por quê se corta se é inútil?

Perdão, perdão, ele só quer ser perdoado pelos pecados que cometeu e que vai cometer na lassidão de sua vigília. Ontem, hoje e amanhã o humanismo e a imanência não bastam, e por isso sofre, sem síncopes, até ser colhido pela síncope eterna. Assim, pede perdão, porque sabe que nasceu para ser derrotado, e depende da graça que o Sileno não conhecia.