3.3.19

O ACORDADO


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Não lhe explicaram se o eterno retorno de Nietzsche era um círculo ou uma espiral.
Pode-se pensar serem um tanto pueris ou excessivamente desdenhosas tais considerações por parte dele se soubéssemos da gravidade do que tinha passado, e que ele acabava de sair do quarto de hotel onde fora mantido dopado durante dois dias por duas prostitutas enquanto elas gastavam o pouco, mas importante dinheiro que tinha. Ele não usava esses serviços e mal sabia o que tinha ocorrido.

Nunca se sabe o que misturam em sua bebida em um momento desse, mas é claro que pode acontecer com quase qualquer um. Ele que tinha saído de casa para se encontrar com ela, sua amada, para que pudessem se entender e planejar o futuro. Sua infelicidade foi decidir tomar apenas aquele copo. Suassuna entenderia Kant se lhe contassem essa história. Agora certamente não havia amada, dinheiro, quarto, mas haveria futuro, porque ele não ia desistir da sua condição de homem, iria erguer a cabeça e trabalhar como sempre, mas ela desaparecera, talvez achando que ele o tivesse feito como um degenerado, o que não é um fato. Não sabe como a coisa aconteceu, mas degenerado não é, pois foi até lá para pedir-lhe que fosse sua mulher.

Saiu do quarto e cambaleou até  o bar, onde o café estava por demais amargo,  mas ele precisava dele. Logo ele, que não bebia mais, talvez uns tragos o aliviassem. Demorou um tempo para se localizar onde estava, porque a memória, ah, esta não voltaria.

Rastejando os pés humilhados dirigiu-se à condução, onde retornou para casa. Tentou falar com ela por telefone, para desculpar-se, seja já pelo que fosse. Não se lembrava de nada. Mas não foi atendido.

Todos na juventude cometem erros, mas os erros dos velhos são mais doloridos.

Ele olhou para a cruz, pedindo perdão, para que Deus o ajudasse a reconstruir sua vida.

A dose que não bebeu. Essa foi a mais amarga. Tentou chorar, mas não conseguiu.

20.10.18

O JARDIM DE VOLTGAARD

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Chorou, sim, mas as lágrimas eram menos volumosas que outrora.

Já não estava no bar, mas no banco daquela sua praça especial, diante das mesmas estátuas de figuras esquecidas que as pombas indolentes e cínicas brindavam com suas cloacas, lixo espalhado pelo chão de terra batida; onde deveria haver grama, grama não crescia.

Pensava nela e nela e nela e no que ela havia sido. E de si mesmo já tinha um veredito, nada favorável. Um grande covarde, talvez, ou apenas uma natureza sensível, para usarmos aqui um eufemismo, mas nada indulgente para consigo.

Chutou o copo plástico de iogurte, porque os catadores nunca deixavam uma lata para ser chutada. As latas eram valiosas. O resto do lixo estava todo lá .

Perdoar, perdoar, perdoar, poderia perdoar, mas viver aquela vida? Não sobreviveria a ela.

Amar, amar, poderia amar e amava, com todo o pacote de que humano não me é estranho que possa haver nesta vida.

Ela, a mulher, não mudaria. Mas ele já não era o mesmo. Ela não conhecia outra vida que não aquele hedonismo piegas e superficial, e não fazia questão sequer de lutar contra o vício: gostava do vício, se orgulhava dele, como se fosse algo rebelde e vanguardista, na verdade ele suspeitava que ela não fazia sequer ideia de outra vida possível, e ela era apenas patética. Ambos o eram, com a única diferença de que ele o sabia.

Já não conseguia manter o ar suspenso no peito para um mergulho tão profundo nesse desafio, não cria ter competência de ajudá-la, com todos os demônios que já o espreitavam. E ela não ligava para isso, as coisas iam ser do seu jeito, ainda com funestas consequências.

Ainda assim a amava; porém a redenção é individual. Definitivamente, ela não era Sônia. Talvez não conhecesse o amor.

Ele talvez conhecesse o amor, e sua fraqueza o chutava como um copo plástico de iogurte.

Estreito e solitário é o caminho.

3.10.18

PLAY IT AGAIN, SAM

O cotovelo encostado no balcão do bar. Sobre o punho cerrado, pendia a cabeça hamletiana. O equilíbrio precário do pensador.

Dentro da carteira, algumas moedas. Aos vinte, isso não o impediria de lutar. Aos quarenta, era inútil.

A bolha martela, o mundo pulsa. O bonde da história passa, e com ele seu circo freak.

As crianças são belas. Dito isso, precisam ser alimentadas. Pelo Estado. O pai opressor.

Ele pensa em espremer o copo de scotch, até ele se quebrar em pequenos fragmentos incolores e inflamáveis com aroma chestertoniano.

Moça elegante, moça educada. Mas excedeu-se de suas qualidades, Vitimizou-se. Parece que todas as moças elegantes e educadas são intragáveis.

Ele é oposição. Simples.

Não há espaço. O grito do mercado mental é a arte que se derrama em um funk indigente que pede esmola. O Estado reproduz a indigência da família. Grande Serão, veredas.

A família perdeu, o Estado ganhou, essa grande família, feia, suja e malvada. Recebeu o que pediu.

Perdição e noites sujas.

E o que não pediu.

A grande roda da história e seu freak show.

E se tivesse sido um grande advogado, ou o velho sapateiro do Jaçanã. Seria diferente?

Estava sendo curado, enfim, de uma doença a que os grandes sucumbiram?

Como Batman em uma armadilha, Batmam que é um Odisseu moderno, sem Penélope, sensaborão.

Olhou para o copo de whisky e pensou naquela cura do Sinclair, que estava funcionando com ele.

Teria cura? Provável. Nunca antes havia crido possível um homem culto voluntariamente submeter-se a uma lavagem cerebral.

1.8.18

Redenção




Não há crime sem castigo, nem redenção sem fé.
Cambaleando em meio à minha cegueira, sempre achando controlar as circunstâncias,
Os raios de Júpiter cumulador de nuvens me acertando como a um cão vadio,
E como um raio veio aquele teu sorriso.
Quis me livrar da sujeira, quantas abluções no corpo e na alma.
Quis, mãos dadas com você, saltar sobre o medo, entregar-me a Deus.

A fé sem obras é morta.
Então nos olhamos e queríamos um ao outro
Com aquele não sei o quê de santidade e inocência que há no amor verdadeiro.
Você cambaleando, eu cambaleando, nos trombamos em algum beijo.
Eu nos queria sóbrios e assim amar-te com a consciência de que amo.
E que de você o que me veio não fui eu, mas as circunstâncias, 
Deus, Milagre, o Eterno e o Infinito.
Assim aconteceste em minha vida.

O castigo sobre meus crimes, pequenos delitos arriscados sobre mim mesmo,
Visitar-me como a Rodion tenha ido Sonya
Não é de morte o meu crime, mas a mesma arrogância me tomou,
E passarei o resto dos meus dias buscando redenção,
Se o Grande Arquiteto permitir, nos seus braços,
Cuidando um das feridas do outro,
Cultivando um jardim de amor verdadeiro,
Como as plantas que deixaste sob meus cuidados
Para tomar-te cuidado e ser a flor mais linda que tu és,
E cuide do templo do Espírito,
E nos redima a redenção do sorriso, do cabelo, da pele, do coração e da alma,
E que o destino venha
No perdão de um Deus amoroso.

23.2.18

C'est la vie


Tão linda como você, apenas você.
Em diferentes ângulos diferentes vistas, diferentes solidões eu a vi.
Nas flores que você não queria porque não era eu, nem eram minhas as que recebeu, que as minhas, nem as pude oferecer...
Nos caminhos que não percorremos, mãos dadas.
No amor que se quis eterno,
Quanta diferença entre o que quisemos e fomos e o que nos machucara antes...
E nem éramos nós, eram outros.
Um beijo, um abraço, regaço; um caminho que não vimos
E deixamos percorrer o tempo como tempo percorrido.
E não se quis, desejando, acabou-se negado
Por medo, até o medo do medo
Do que foi feito e nos machucou e nos faz parecer duros e frondosos
Apenas nos fez casca, para suportar o inseto,
Apenas nos fez tronco para suportar o vento.
E o silêncio em que falamos não dizendo
É o silêncio dolorido do que já foi ruidoso e não foi ouvido porque silenciou
Na hora sacra de ser enunciado como liturgia.
Mas nos encontramos, rápidos, nos olhamos com os cantos dos olhos.
Sumário, indiscernível.
Paciência para o nosso segundo de eternidade, que nem começamos.
Tão linda como você, apenas você.
Recebe ao menos esta flor, feita de palavras.
Flores são inocentes, o amor, culpado.

28.9.17

VOCÊ É A LÍNGUA EM QUE O LETREIRO FOI ESCRITO




E eu também sou a placa.
A placa que também não haverá um dia.
E eu também sou o letreiro.
Mas você era a língua em que o letreiro fora escrito.
E agora o que há escrito em mim não faz mais sentido.
Porque quando você se foi, foi-se o idioma em que fui escrito; já não existe.
E pendurado defronte à tabacaria defronte, estou, oscilando sem significado,
Vazio, observando o ir e vir dos inúmeros Esteves como se tal fosse a eternidade que é, mas não sou,
Não sabendo as letras que devo buscar para me escrever em uma língua que não mais existe,
Um idioma que se foi.
E apesar de não ser, isso é também eternidade.
Ainda quando a corda gasta se arrebenta e eu, mera placa não escrita, espatifo-me no chão,
Continua a ser e a ser eternidade.
Continua a ser eternidade...
E quando alguém passa por mim e indaga: "estás bem?", é sempre o Esteves.
E sem metafísica ajuda a bater-me a poeira que se impregnou da queda.
Sorrio um sorriso morto e respondo que sim,
E quando ele se vira, deixo escorrer uma lágrima que evapora de mim, em eternidade,
De saber falar apenas a mim, que conheci tal idioma que se foi e é você.
E já não há mais placa, que já eu mesmo não sou, intransitivo.


2.7.17

VIGÍLIA À LUZ DAS ESTRELAS

Andrômeda acorrentada. Pintura de Edward Poynter (1869).
Andrômeda acorrentada. Edward Pointer (1869)


Lá no céu da madrugada,
No escuro do silêncio,
Uma alma, sem sossego,
As estrelas procurava
Com impaciência, entre nuvens tão pesadas.
Mas, de forma repentina,
Impávida clemência
Se apossou de Júpiter.
As nuvens se afastaram, dando luz à madrugada.
E a abóboda celeste, se abriu, iluminada.

Houve úmida alegria nos olhos,
Na alma entristecida de homem contrito,
E na Via Láctea iluminada
Procurava algum conforto,
Longe, nas estrelas impávidas,
O nome, o rosto, o perfume,
E o sorriso daquela que amava,
Que de forma tola, triste e frívola magoara.
Na noite a bela companhia
Das estrelas agora o consolam.
A alma não se esvazia, alegria é encontrada.

Libra, o equilíbrio lhe enseja
A não abandonar a razão iluminada.
Ursas, irmãs lhe ensinam que à tolice ou sabedoria
Fortuna menor ou maior é dada.
Crater, a bela taça
Do doce vinho compartilhado.
Indus, o misticismo da paixão
Que acrescenta ao Liceu da razão limitada.
Andrômeda, a própria amada,
De quem deseja ser Perseu.

3.6.17

ÁGORA

Lá, onde estamos sós,
Estão todos os combatentes.
Na mesma alma, a que tenho, a tiveram os poetas,
E também os guerreiros.
E  muitos que foram poetas e guerreiros.
É lá que nos vexamos, ou nos lançamos em contrição.
É lá que amamos, odiamos e então
É como a Ágora, da paixão e da razão
Onde entre si discutem
O vício e a virtude,
O dever e o querer
E do mais vil egoísmo
Nasce o ato de dever
Como vã solicitude.
É na Ágora da alma
Onde guerreia o nosso ser
Tentando melhor sorte
Debruçar-se em águas calmas
Para ter do que beber.
É lá mesmo onde combatem
O orgulho e a humildade,
O silêncio e o rumor.
Lá também há tempestade,
A solidão ruidosa da cidade,
O andar por entre as ruas,
Ruas minhas, ruas tuas,
Da cidade solitária.
Lá gritamos e choramos
Sem sermos vistos
Desejando o que não há.
Lá também é onde amamos
Imprudentes espartanos,
Defendendo a nossa fé.
Guerreiros em armas,
Homens, mulheres, crianças,
Somos tudo e somos nada.
Legisladores de dores,
De superficialidade e profundidade.
De paixões e de amores,
De doenças e de dores,
Colocando-nos em pé.
Todo o dia de alegria e de agonia,
Passo a passo.
Vida a vida.
Vida a vida.
Na Ágora da alma eu às vezes espero um conselho
De um concidadão.
Passo a passo,
Alma a alma.
Vida a vida.
Lá, onde há um solar relógio que conta as horas
De nossa despedida.
Enquanto sérios esperamos os Campos Elísios,
Encontramos o Hades e talvez nem isso.
Mas amamos, contritos,
Nos renovamos, aflitos,
No olhar de uma criança, num sorriso de mulher.
Lá, na Ágora chamada Alma,
Como o poeta que foi à guerra e voltou,
E de lá, tudo narrou,
Escrevendo, enfim, a Bíblia.

26.5.17

CONFESSIONAL DO DIA

Empertigado. Sim, muito seguro de si, encostado no muro, senhor da vida, senhor do destino.
Lembra até o filho de Peleu com aqueles calcanhares sempre ralados, antes, de correr na terra, agora de andar no asfalto.

Um olho velho e torto e congelado mira sua segurança com inveja melíflua, pegajosa, nauseante. Ele retribui o olhar. A velha parca desvia seus olhos tortos invejosos e cobiçosos para vários lugares ao mesmo tempo e abaixa a cabeça, apanhada em seu ato.

Ele pensa com segurança. Vê-se no seu olhar dirigido a nada e a ninguém as mais altas aspirações do heroísmo, hoje a Espanha, amanhã Cartago, ele é um dominador, um conquistador.

Ele não roubou a mulher do átrida Menelau, mas ei-lo morrendo por ela, sob as setas dos milhares de meninos Páris exaustivamente treinados para flechar, por amor de uma Helena.

O que é um calcanhar, para quem tem uma mira primorosa?

Aquiles dos pés ligeiros.

O ônibus estaciona e ele embarca para mais uma entrevista de emprego. Não sem antes dar passagem à velha.

20.5.17

O VÓRTICE DO MUNDO DEVORA A MÉTRICA



Vórtice de mundo que me encerra,
Movimento voraz com que me cinge,
De vida e morte, como esfinge.
A sua boca se descerra

Diuturnamente em uma proposta
Cuja resposta, saber não dera.
Quer o segredo das esferas,
Das primeira causas, a resposta.

Do Amor, do Logos, ai de mim,
Que amo e penso, e me devora
Em meus esforços, mesmo assim,

O turbilhão que se arvora
Em bem? No mal? Nem isso, e enfim,
Pereço e ele me devora.

Oh, turbilhão, em que me encolho!
Ainda assim, nos transcendentes
Amor e Logos eu me apoio
Para viver, não pra vencer-te.