28.9.17

VOCÊ É A LÍNGUA EM QUE O LETREIRO FOI ESCRITO




E eu também sou a placa.
A placa que também não haverá um dia.
E eu também sou o letreiro.
Mas você era a língua em que o letreiro fora escrito.
E agora o que há escrito em mim não faz mais sentido.
Porque quando você se foi, foi-se o idioma em que fui escrito; já não existe.
E pendurado defronte à tabacaria defronte, estou, oscilando sem significado,
Vazio, observando o ir e vir dos inúmeros Esteves como se tal fosse a eternidade que é, mas não sou,
Não sabendo as letras que devo buscar para me escrever em uma língua que não mais existe,
Um idioma que se foi.
E apesar de não ser, isso é também eternidade.
Ainda quando a corda gasta se arrebenta e eu, mera placa não escrita, espatifo-me no chão,
Continua a ser e a ser eternidade.
Continua a ser eternidade...
E quando alguém passa por mim e indaga: "estás bem?", é sempre o Esteves.
E sem metafísica ajuda a bater-me a poeira que se impregnou da queda.
Sorrio um sorriso morto e respondo que sim,
E quando ele se vira, deixo escorrer uma lágrima que evapora de mim, em eternidade,
De saber falar apenas a mim, que conheci tal idioma que se foi e é você.
E já não há mais placa, que já eu mesmo não sou, intransitivo.


2.7.17

VIGÍLIA À LUZ DAS ESTRELAS

Andrômeda acorrentada. Pintura de Edward Poynter (1869).
Andrômeda acorrentada. Edward Pointer (1869)


Lá no céu da madrugada,
No escuro do silêncio,
Uma alma, sem sossego,
As estrelas procurava
Com impaciência, entre nuvens tão pesadas.
Mas, de forma repentina,
Impávida clemência
Se apossou de Júpiter.
As nuvens se afastaram, dando luz à madrugada.
E a abóboda celeste, se abriu, iluminada.

Houve úmida alegria nos olhos,
Na alma entristecida de homem contrito,
E na Via Láctea iluminada
Procurava algum conforto,
Longe, nas estrelas impávidas,
O nome, o rosto, o perfume,
E o sorriso daquela que amava,
Que de forma tola, triste e frívola magoara.
Na noite a bela companhia
Das estrelas agora o consolam.
A alma não se esvazia, alegria é encontrada.

Libra, o equilíbrio lhe enseja
A não abandonar a razão iluminada.
Ursas, irmãs lhe ensinam que à tolice ou sabedoria
Fortuna menor ou maior é dada.
Crater, a bela taça
Do doce vinho compartilhado.
Indus, o misticismo da paixão
Que acrescenta ao Liceu da razão limitada.
Andrômeda, a própria amada,
De quem deseja ser Perseu.

3.6.17

ÁGORA

Lá, onde estamos sós,
Estão todos os combatentes.
Na mesma alma, a que tenho, a tiveram os poetas,
E também os guerreiros.
E  muitos que foram poetas e guerreiros.
É lá que nos vexamos, ou nos lançamos em contrição.
É lá que amamos, odiamos e então
É como a Ágora, da paixão e da razão
Onde entre si discutem
O vício e a virtude,
O dever e o querer
E do mais vil egoísmo
Nasce o ato de dever
Como vã solicitude.
É na Ágora da alma
Onde guerreia o nosso ser
Tentando melhor sorte
Debruçar-se em águas calmas
Para ter do que beber.
É lá mesmo onde combatem
O orgulho e a humildade,
O silêncio e o rumor.
Lá também há tempestade,
A solidão ruidosa da cidade,
O andar por entre as ruas,
Ruas minhas, ruas tuas,
Da cidade solitária.
Lá gritamos e choramos
Sem sermos vistos
Desejando o que não há.
Lá também é onde amamos
Imprudentes espartanos,
Defendendo a nossa fé.
Guerreiros em armas,
Homens, mulheres, crianças,
Somos tudo e somos nada.
Legisladores de dores,
De superficialidade e profundidade.
De paixões e de amores,
De doenças e de dores,
Colocando-nos em pé.
Todo o dia de alegria e de agonia,
Passo a passo.
Vida a vida.
Vida a vida.
Na Ágora da alma eu às vezes espero um conselho
De um concidadão.
Passo a passo,
Alma a alma.
Vida a vida.
Lá, onde há um solar relógio que conta as horas
De nossa despedida.
Enquanto sérios esperamos os Campos Elísios,
Encontramos o Hades e talvez nem isso.
Mas amamos, contritos,
Nos renovamos, aflitos,
No olhar de uma criança, num sorriso de mulher.
Lá, na Ágora chamada Alma,
Como o poeta que foi à guerra e voltou,
E de lá, tudo narrou,
Escrevendo, enfim, a Bíblia.

26.5.17

CONFESSIONAL DO DIA

Empertigado. Sim, muito seguro de si, encostado no muro, senhor da vida, senhor do destino.
Lembra até o filho de Peleu com aqueles calcanhares sempre ralados, antes, de correr na terra, agora de andar no asfalto.

Um olho velho e torto e congelado mira sua segurança com inveja melíflua, pegajosa, nauseante. Ele retribui o olhar. A velha parca desvia seus olhos tortos invejosos e cobiçosos para vários lugares ao mesmo tempo e abaixa a cabeça, apanhada em seu ato.

Ele pensa com segurança. Vê-se no seu olhar dirigido a nada e a ninguém as mais altas aspirações do heroísmo, hoje a Espanha, amanhã Cartago, ele é um dominador, um conquistador.

Ele não roubou a mulher do átrida Menelau, mas ei-lo morrendo por ela, sob as setas dos milhares de meninos Páris exaustivamente treinados para flechar, por amor de uma Helena.

O que é um calcanhar, para quem tem uma mira primorosa?

Aquiles dos pés ligeiros.

O ônibus estaciona e ele embarca para mais uma entrevista de emprego. Não sem antes dar passagem à velha.

20.5.17

O VÓRTICE DO MUNDO DEVORA A MÉTRICA



Vórtice de mundo que me encerra,
Movimento voraz com que me cinge,
De vida e morte, como esfinge.
A sua boca se descerra

Diuturnamente em uma proposta
Cuja resposta, saber não dera.
Quer o segredo das esferas,
Das primeira causas, a resposta.

Do Amor, do Logos, ai de mim,
Que amo e penso, e me devora
Em meus esforços, mesmo assim,

O turbilhão que se arvora
Em bem? No mal? Nem isso, e enfim,
Pereço e ele me devora.

Oh, turbilhão, em que me encolho!
Ainda assim, nos transcendentes
Amor e Logos eu me apoio
Para viver, não pra vencer-te.

14.5.17

SOBRE OS BALÕES

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Sabe, sobre os balões?
Eles sobem e no dia de sol
Olhamos o céu e nos ofusca a vista.

Nada é sobre balões
E sim sobre o céu e sobre o sol e sobre a vista.
E sobre a permanência e a eternidade.

Nada sabemos sobre o sol e o céu,
A não ser que permanecerão sobre o balão e sobre nossa vista...

Primeiro acabará o balão, depois a nossa vista
E quem sabe até o céu e o sol se acabarão,
Mas nada saberemos sobre isso,
Porque quando acabarem-se o céu e o sol
Já não existirão nem o balão nem nossa vista.

É como o sábio Sócrates que amou Xantipa
É como na quadrilha do sábio Drummond,
E nada se falou entre Sócrates e Drummond
Acerca do que sente Xantipa, Teresa, Raimundo, Joaquim
E Lili que não amava ninguém e casou com J. Pinto Fernandes.

Quem raios pode dizer que Lili não amava ninguém?

Eu quero saber se Xantipa acordou bem, se está com dor, se está feliz.
Eu quero andar de mãos dadas com Xantipa na sorveteria até me esquecer da maiêutica.
Eu quero dizer a Xantipa o quanto a amo e beijá-la quando acordar com os cabelos embaraçados, contra todos os filósofos e poetas que dizem que o amor é uma quimera.

Na verdade eu quero que Drummond e Sócrates às vezes vão para o inferno, porque estou mais é querendo saber de Xantipa, Lili e J. Pinto Fernandes.

Não se dê ao homem ares de sabedoria, que qualquer um é capaz de escrever poemas modernistas.
Não somos eternidade aqui, apenas permanência. Eternidade apenas no ato de amar
Em nossa permanência.
Até que o nosso amor se torne em eternidade, como é para Deus, eterno, e não para nós, permanências.

Aí estão a lembrança, a memória e a saudade. É por isso que sabemos ainda quem é Xantipa, quem é Lili, e quem é J. Pinto Fernandes

Tudo isso para dizer que se é capaz de amar.

Tudo isso para dizer que sou capaz de amar e ter medo e capaz de querer cuidar até o aborrecimento.

Porque não se perde algo duas vezes, se esse algo é eterno.

E sobre a permanência e a eternidade, a eternidade é o amor. A permanência, o balão.


9.5.17

UMA VEZ QUE ESTEJA CLARO

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Os sentidos obscurecem a verdade. A intuição a capacita um pouco, mas ainda de forma turva e opaca.
Admira-me os cientistas serem tão convictos.
Admira-me os poetas serem tão insensatos.
Admira-me acordar e dizer: "não há tédio", e nem sempre o que há é melhor do que o tédio que não há.

Admira-me a rima e a aliteração, que fazem-me rir um riso meio forçado como uma vírgula fora do lugar que muda todo o sentido e direção. A maior parte do que se diz nada quer dizer.

Fortes são os cheios de sentido que fenecem bravamente ante o olhar atônito dos que fenecerão em seguida sem tanta bravura.

E eu, quem sou? Certamente o que fenece. Eu quis ser Aquiles, depois quis ser Heitor, e agora me contento em ser o velho Príamo, mas daqui a pouco terei de me contentar em ser Criseida.

Mas eu queria ser mesmo o velho Nestor.

Aquiles, Heitor, Príamo, Criseida, Nestor. Todos feneceram.

Uma vez que esteja claro, começa a confusão.

Foi como quando inventaram a poesia sem rima, a arte sem beleza, a verdade sem imaginação. O mundo mergulhado em barbárie e loucura, porque se sentiram entediadas as almas agonizantes, mas na verdade era agonia o que chamavam de tédio.

E agora talvez tudo seja agonia; talvez ainda haja amor.

7.5.17

LAÇO

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Não é a solidão que nos assusta.
Mansarda que somos, aos outros dedicamos nossas qualidades.
Dividimos em sim e não coisas improváveis, obscuras e desconhecidas com aquele ar de sabido, estelionatários da verdade que somos.
Que é um homem só? Um santo?
Qual!
Mesmo aquele que se retira com o silício marcando-lhe a pele com devoção, espera aprovação.
Seja de Deus ou dos santos.
E os devotos do nada esperam aprovação do super-homem nietzscheano ridículo a ponderar sobre sua loucura sifilítica?
Batendo massa na obra, batendo bolo na colher de pau, estudando com olhos lassos como digno fosse qualquer coisa que ama um poema modernista sem rimas?
Qual poema?
Qual?!!
Sentirmo-nos sábios por sabermos algo que sabemos que vai acontecer e que acontece de qualquer jeito, sejamos sábios ou imbecis?
Saber vai mudar as coisas?
Será isto poesia?
Não.
Isto não é.

26.4.17

O SONHADOR E O PRÁTICO




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Às vezes me pego sonhando ao lado do prático. Sonhando, é claro, imaginando, assim como imaginou aquele que construiu a fórmula que explicou a construção das pirâmides sem fórmula construída.

O mais assustador é que o sonhador e o prático morrem, um e outro, apesar de se oporem numa dialética que não se cala, geração após geração de sonhadores e práticos.

Mas ambos os grupos, sonhadores e práticos, digladiam-se numa interessante dialética cuja síntese nos remete sempre à mesma conclusão que têm os vermes por sob a terra.

Lá vai o sonhador com sua transcendência e o prático com sua imanência, ambos certos, ambos convictos, gladiadores de verdades sempiternas e executores de obras no campo do espírito e da matéria que dominam com maestria diante de olhos  leigos. Os sonhadores criam as guerras e os práticos as armas e os leigos aplaudem e lutam as guerras inventadas pelo sonhador com as armas desenvolvidas pelo prático.

Quisera eu, sonhador de campos de trigo, oferecer adjetivos aos fatos por si muito bem explicados, mas adjetivos já são também pela sua própria natureza insubstanciados. Pratiquemos os campos de trigos para alimentar os leigos que lutam a guerra do sonhador com as armas do prático.

Assim a humanidade se orgulha das pirâmides do Egito, como se tivesse um direito natural em sua criação, sem haver desenhado uma linha ou colocado uma pedra em algo feito por sonhadores e práticos há milênios extintos.

Se enciclopédia houvesse, caberia no capítulo das inutilidades em geral.

E daríamos razão ao cachorro tolerado pela gerência.





24.4.17

SAUDADE

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Sendo concêntrica quando expandida,
sendo o Infinito quando em retração,
Saudade, sempre queres dar guarida
porém jamais outorga solução.

Isso nos mostra a cada passo a Vida.
Basta que alguém nos falte, pois se então
queres suprir a ausência desmedida
com tua inconsútil vastidão

ansiando por secar o nosso pranto
com todos os teus préstimos enxutos,
chegas sempre atrasada em minutos.

Assim, no drama da paixão, portanto,
És como Arimatéia ou Nicodêmus:
nos vem salvar depois que já morremos.

José Geraldo Vieira. Impressões & Expressões. Arcádia, 2016. P. 301.

17.4.17

E NOS FEZ PENSAR


Eu queria saber o que nos faz errar de tanto querer acertar.
Deve ser uma chicotada de Deus, para nos colocar em nosso lugar.
Apenas um lembrete: "ei, que te fazes pensar que possas ser perfeito, sendo humano?"
Se não podemos estar em todos os lugares, se não podemos salvar quem deva ser salvo, nem a nós mesmos?
Apenas correr e chegar atrasado.
Às vezes, apenas olhar e sentir-se impotente.
Que poderia ser feito diante de uma embolia?
Em frente a uma alma que expira?
Por que Deus nos dá e Deus nos leva?
Sim, todos estão sendo esforçados e nos esforçamos para que aqueles que  amamos não desanimem.
E quanto de saúde temos e nos custa porque amamos, amamos e amamos?
E estamos sempre no cheque especial da saúde porque cativamos e àqueles que nos amam.
Quem conheceria o outro verdadeiramente como a verdadeira centelha de Deus?
Por que somos brutalmente castigados pela própria natureza, que nos dá vísceras, nos envelhece, nos subtrai enquanto ainda cremos na alma, no espírito e na verdade transcendente?
Ah, se fui forte para chegar até aqui por um sorriso.
Um sorriso de criança, um sorriso de velho.
Um sorriso com dentes, sem dentes, aí está a centelha!
Oferecer um lenço para enxugar a lágrima. Um regaço, se é que um regaço há, que nada há que não possa ser colhido pela inexistência.
Quando se sabe que amar é deixar ser e nos atrapalhamos em bricabraques que também terminarão conosco sem relevância.
Diante disso, a nenhuma conclusão se chega.
E acordamos em acordar porque cada dia é um contrato com a vida a ser cumprido.
Enfiamos nossa vergonha e nosso erro numa sacola que morrerá conosco.