16.12.14

MAIS UM ESCRITO SURREALISTA



De nada resolve, mais uma vez, percorrer o caminho da inconsciência. O sonho de novo o devolverá, cedo ou tarde, do arrebalde aos arcos do proscênio, sem um texto ou qualquer ensaio. Para algumas pessoas é difícil o improviso.

Talvez esse fosse o problema de Salvador Dalí e dos que se refugiavam no sonho. Dali, do sonho, não há como retirar escolhas. Apenas, eventualmente, se acorda da inconsequência.

Mas isso também é apenas especulação. Não vale dez por cento de um sorriso de uma pessoa amada.

Se eu pudesse dar um conselho a alguém: exercite a imaginação, mas não ao excesso.

A realidade, às vezes, é estranha.

Um limão.

Para quem souber fazer, uma limonada.

Sigo tentando.



3.12.14

AOS CRÍTICOS DE ARTE

 


Terei eu a real noção do belo?

Talvez não, procurem-na nos jornalistas brasileiros.

E não se esqueçam dos "críticos" de arte.

2.12.14

O GRANDE NINGUÉM E LARS VON TRIER


Às vezes é preferível ser o Grande Ninguém a ser Lars. O Grande Ninguém sabe de pronto seu lugar no mundo e sua mentira, enquanto Lars precisa ser idolatrado por milhões de idiotas até ser cheirado pelos cachorros para entender sua mentira.

Nisso, o Grande Ninguém é involuntariamente mais avançado que Lars.

O Grande Ninguém simpatiza com Lars. Lars se drogou bastante e, no momento, sóbrio, pretende-se incapaz de produzir obras de arte. O Grande Ninguém jamais pretendeu Nada, com "N" maiúsculo, e tem mais seguidores drogados e prostituídos que simplesmente Lars passa a ser café com leite. Tampouco acha que Lars produziu 'arte'. Nenhum idiota precisa de Dogville para continuar se sentindo idiota. Pura perda de tempo.

Lars morrerá, assim como o Grande Ninguém.

Morrem pessoas todos os dias.

Existe a verdade.

O Grande Ninguém acha Lars um idiota.

Lars, diz o próprio, era melhor chapado. O Grande Ninguém, esse não é ninguém, que fique calado. Porque está chapado, é melhor que não diga nada.

23.11.14

MEIA NOITE: PARIS E O PÉ QUEBRADO


Os escritores são cheios de palavras, diz-me o filme de Woody Allen, "Meia noite em Paris".  Sobre o filme, a única coisa com que concordo é que Paris é uma cidade brega. Tudo bem, eu também sou brega. Sou cheio de palavras, sou cheio de bitucas de cigarro, de latas vazias de cerveja e agora tenho também um pé quebrado. Odeio as mulheres, embora as ame. Carrego minha Paris particular comigo e sempre grito em meio à madrugada, até o vizinho me xingar.

Picasso e Hemingway. Scott e Zelda. Desencaminhado pelos anos vinte, procuro reequilibrar a idiotia lendo Agostinho, Aristóteles e Tomás de Aquino. Eu fracasso.

Meu pé quebrado não dói. Quebrei-o chutando a cadeira. Quebrei-o porque há uma mulher. Sem mulher, não haveria pé quebrado. Prefiro-o assim.

Amo as mulheres, fingindo odiar. Todo o movimento do homem é o medo da mulher.

Paris não dói. O pé também não.

E eu amo a mulher.

20.11.14

O GRANDE NINGUÉM E A SOLIDÃO DAS ESFERAS



Hoje é o dia da consciência de alguém. Eu não sou alguém cuja consciência tenha dia. Embora hoje não seja o dia da minha consciência, ela se recusa a espairecer, irrefletida.

Enquanto reflito sobre o que seja a tal da consciência, se ela está na pele ou na mente, ouço o Tucuruvi tremer.

Um dia serei um escritor sem estilo, por enquanto sou apenas o Grande Ninguém, que caminha para lugar nenhum. Sim, creio que transcenderei.

Mas não é sobre isso que vou contar, porque o Tucuruvi está tremendo, e o Tucuruvi hoje é a casa do Grande Ninguém, que às vezes é chamado Grande Nada. Esse ruído, que penetra os sentidos, faz-me despertar de pensamentos, que refletem sobre a consciência, para chegar à janela, não como o poeta que lá vê o cego e a guitarra, mas como curioso por desvendar o ruído que se aproximava.

Fiquei como o cego, sem ver, mas outros sentidos me informaram: é um helicóptero.

Parecia que explodiria dentro de casa, e uma vez que eu tinha uma casa e gostava muito dela, temi mais pela casa que na verdade era alugada.

Não explodiu, passou. O helicóptero se foi, ruidosamente como a velha cigana ia, eu me lembro, a cigana que era mãe dos comunistas, e na sequência do helicóptero, os aviões passaram a taxiar pelo Tucuruvi e eu me pus a não esquecer do assunto e a teorizar (pois que tenho muita prática na teoria) sobre as motivações de cada um desses homens que deslizavam sobre a minha cabeça em máquinas de levar homens do nada a lugar nenhum, igualando sem revolução o destino dos que estão no solo ao dos que deste se elevam, de forma precária, para nele finalmente se aconchegarem no aconchego eterno, transcendendo ao pó.

Sei que parece complicado, mas faz sentido, e protesto por usar o sentido, pois há vários caminhos para o lugar-nenhum, e ninguém pode usar de inocência para negar: aqui, importam os meios.

O helicóptero (e seu homem, o piloto) poderia estar fazendo um transporte de urgência de algum acidentado, levando drogas ou dinheiro da máfia de Caracas, poderia estar com pressa para semear ou ceifar.

Que importava? No ar, o piloto é escravo da máquina.

Importava a solidão e  perfeição das esferas.

5.11.14

CINGAPURA. NÃO.


"Para quem não vive sem uma goma de mascar e acha que pode 'driblar' a lei e jogar o chiclete no chão, câmeras de vigilância 'entregam' os infratores à polícia. São praticamente duas a cada cem metros, espalhadas por postes, sinais de trânsito e fachadas de lojas. 'Não há privacidade em Cingapura, esse é o lado ruim daqui. No entanto, a cidade é limpa, não há sujeira, violência ou pobreza', lembra Robbie Ho. Outro hábito comum no Brasil e que pode literalmente custar caro em Cingapura é o de fumar. Na verdade, não há problema em dar tragadas em público. O problema é oferecer um cigarro a um colega. 'As pessoas podem te pedir cigarros, mas jamais ofereça. Se for pego, você terá de pagar US$ 200 (cerca de R$ 320) em multa', diz o motorista, que dirige um luxuoso carro com um bibelô de Buda, adornado com uma pena de pavão no painel. 'É para oferecer harmonia aos passageiros que transporto.'"

Fechou o laptop, em que lia as notícias do portal da terra. Estava saturado de notícias. Não sem lembrar que 'não há privacidade em Cingapura'. Não tinha o hábito de mascar chiclete e jamais oferecera cigarros a ninguém, no Brasil mesmo. Discou, digitando os números, para o agente que o convidara a trabalhar em Cingapura, para recusar o convite.

Não tinha medo de ser preso.

O problema era a privacidade.

Lembrou-se de Orwell. Arrepiou-se.

Cingapura, não.

O PLANETA DO GRANDE NINGUÉM É MENOR QUE O DO PEQUENO PRÍNCIPE

4.11.14

ACERCA DA FOTO TIRADA PELA NASA

Foto do Brasil tirada pela Nasa! Sensacional!!! Não acham?


É realmente lindo. Imagino que talvez os filósofos como Leibniz pudessem chama-lo o melhor dos mundos, enquanto Voltaire arrotaria seu Cândido. Não obstante, solitário como de minha índole, pergunto: quem mais contribuiu para essas luzinhas estarem acesas: Leibniz ou Voltaire?

Tendo a crer que seja o melhor (dos mundos), colocando uma impressão de que melhor mundo não possa haver, visto que não conheço um mundo melhor que este; entrementes, o fato de desconhecer outros mundos não quer dizer que não existam. Mas, nesta terra e nesta vida, definitivamente, não existem.

Porque esta vida eu conheço, embora tenha me negado a conhece-la. Não adianta. Ela se me adianta e está sempre pronta a me esbofetear com verdades.

E se eu olho para os céus, e vejo neles a divina providência, não é para Marte que eu esteja olhando. Embora esteja olhando para Marte.

Leibniz era bem feio. Mas ele descreveu o primeiro sistema de numeração binário moderno, tal como o sistema numérico binário utilizado nos dias de hoje.

Talvez Leibniz seja o pai do Google. Talvez não. Certo é que o Google vai acabar, um dia. O dígito binário, não. Como baratas.

Já Voltaire é o pai do Cândido. Isso é inegável. No entanto, não ajuda muito.



29.10.14

ESCRITO SURREALISTA




- Alguns dos meus amigos mais simples sabem ler melhor do que alguns dos mais estudados. Basta conhecer o sentido das palavras e o que elas representam no mundo real. Mas alguns dos meus amigos mais simples têm mais amor pelo conhecimento e pela verdade do que alguns dos meus amigos mais estudados.

A moça simplesmente não se interessava no que o rapaz falava. Tomava seu sorvete de açaí e acariciava seu bichano, de maneira frívola. Ela era praticamente um bichano, até em seus verdes olhos.

Enfastiou-se o rapaz, e empertigou-se:

- Não adianta falar. Todo mundo peidou e não foi ninguém...

A moça de olhos verdes peidou. Fedido.

O rapaz reagiu ao peido:

- Vou transformar teu peido em poesia...

- Duvido. Não vale.

- É verdade, eu não sei escrever. Sou o Elói da máquina do tempo de H.G Wells. Sou a acrobacia lógica de Bertrand Russell. Da matemática à inexistência da metafísica! Sem intermediários.

Virou-se e dormiu. Teve sonhos nem freudianos, nem bretonianos, nem salvadordalinianos. Aliás, sonhou que Dali foi expulso do surrealismo e morreu miseravelmente louco.

O moço gritou a noite inteira, em seus sonhos.

A moça peidou muito naquela noite.

17.10.14

ABSINTO E GRANADINE: EU NÃO ABRAÇO QUEM EU NÃO CONHEÇO




Apareceu do nada um cara barbudo. Ele era jovem, do tipo descolado e com uns cortes estranhos e irregulares no cabelo. Da tatuagem, eu nem falo. Tatuagem é tão carne-de-vaca que qualquer puta velha, que eu comi quando era nova, tem. Isso significa que eu também já fui novo. O problema não era nada disso. Eu não fiquei com medo. Fiquei desconfiado. O cara não tinha cara de quem queria me dar um abraço.

Ocorre que o cara me pediu exatamente isso. O cara queria me abraçar e perguntou: "você pode me dar um abraço?". Olhei para a cara dele e disse a mim mesmo: 'esse filho de uma puta não quer me abraçar porra nenhuma!'.

Mas eu tenho experiência. Então perguntei a ele: 'posso pensar?' Nesse momento, seu olhar sofreu uma transmutação. Pareceu-me um olhar perplexo, de quem não lembrava daquela fala no roteiro, de quem se achava muito bom ator e nunca pensou em filosofia. Esse safado definitivamente não queria um abraço.

O cara me esperou pensar por uns dois minutos e meio e, com ar impaciente, perguntou: "e aí? Decidiu?".

"Não, ainda", respondi. "Não posso te dar um abraço falso. Não sei se meu abraço é falso ou verdadeiro. Você pode me explicar o motivo pelo qual você quer um abraço? Se o Corinthians ganhou, não vou querer te abraçar, pois quando o Corinthians ganha fico chateado e não quero abraçar ninguém. Se você acertou na sena, te abraço e pago um almoço pra você'.

O cara parecia não acreditar no que ouvia. Passou a sacudir a cabeça de um lado para outro, desorientado.

Então, passou-se o seguinte: o cara se cansou e disse que era apenas um ator, que se chamava J. e trabalhava para a empresa B., que pertencia a F., que era ligado a uma ONG financiada por uma fundação, que por sua vez era ligada ao governo de X, em um dos três âmbitos do estado onde ficava a vila de Kansas City, no interior de Dubai, subúrbio de Kiev, próximo a Putin e Les Miserables e San Fidel. Disse mais: ele era um ator engajado, mas estava desempregado e, para arrancar uns caraminguás, para comprar um fumo e levar a mina pro Motel, pegou esse trabalho de encenar um vídeo que provasse que as pessoas não gostam de abraçar.

Então eu disse que não, obrigado, não o abraçaria, e fui seguir meu caminho.

Quando olhei para trás, ele estava abraçando mendigos, rápida e separadamente, com cara de asco. Eu sorri, é verdade, um sorriso meio triste que já me caracteriza, estava um pouco desconsolado, pois tinha certeza que os mendigos não receberiam seus direitos de imagem, em dinheiro, nem de J., nem de B., nem de F, nem da ONG, nem da fundação, nem do governo.

Alguns dias depois, vi o vídeo com o cara no "Face". Lembrei-me de sua face. Não que o cara não merecesse um abraço. Acho que ele nem queria.

Pensei: "vivendo neste lugar, nesta época, quem precisa de Cem Anos de Solidão?"

12.10.14

GROUND CONTROL TO MAJOR TOM



Cerveja à mão. Quatro, três, duas da manhã. Hipócrita fácil.  Qualquer um que lhe passasse a mão, naquele momento o levaria. Mais uma vez lhe foram mandados anjos. "Major Tom to ground control".

Cambaleou e demorou a achar o buraco da fechadura.

Aquela voz ecoava em seu cérebro sobrecarregado: "may God's love be with you".

Naquele momento, nada a fazer acerca do planeta azul.

Até fora da atmosfera os erros o acompanhavam.

Estava longe. Isso não era agradável.

Talvez um dia voltasse.

Afinal, estava sempre sendo trazido de volta à Terra.

8.10.14

O SECRETÁRIO



Naquele enterro, não havia testemunhas, exceto uma.

"Morreu solitário e esquecido. O funeral foi acompanhado pelo secretário, única testemunha dos últimos dias."

Ali está, até hoje, para quem quiser encontra-lo. Sem emoção.

Uma interessante personagem. Saquem seus celulares, fotografem seu túmulo. Desconhecem até coisas conhecidas: humanidade.

O dígito binário.

Naquele enterro, havia uma testemunha.

E o caixão de Gottfried descia.

Sua máquina de calcular calculava computadores.

Seu cálculo moral era o amor.

E o caixão de Gottfried descia.

Seu secretário tirou o chapéu, respeitosamente.

E todo o conhecimento ainda era menor, assim como hoje.

E o caixão de Gottfried repousou modestamente junto ao solo.

E nós, nada tendo aprendido com o conhecimento.

Nós nos consolamos na ignorância sem consolo.

23.9.14

O MELIANTE - PERSPECTIVA REGISTRADA


Retratos cantados. Falados.

Assinados.

Assassinados.

Meliantes e militantes são como moscas.

Acham que progredir é bom.

Ebola progride.

E a bola regride.

Nem tudo necessariamente evolui.

Pelé e preto.

- Macaco - Pelé diz.

Ele ri.  Os brancos se ofendem.

Gostei mais de Pelé do que dos progressistas.

Pelé nunca foi burro.

Mas a dengue é progressista.

(Desenho de Igor)



BOSQUE DOS DESEJOS (sem imagem)

Segredos são desejos.
Não adianta dizer que não.
Ai de mim se teus desejos.
Ai de mim se tua razão.

Ai de mim, se realizas o que pensas.
Ai de mim, se utilizas tua razão.
Teu pensamento se sustenta
Em tua emoção.

Bem-vindo ao bosque dos desejos,
Onde o segredo não tem tempo nem idade.
Ser imbecil por osmose
É o que ensina minha realidade.

Quem me dera um mundo assim
Onde uma idéia se transformaria,
No começo, ou no fim
De um desejo que um idiota

Realizaria.

Escrito em homenagem à velha ortografia. Se os socialistas quiserem mudar a ortografia mais uma vez, eles que se fodam (Jack Keslarek).

16.9.14

JOGRAL: O HOMEM QUE LIA O BIGODE


Bigode:

- Em geral, todo o progresso tem que ser precedido de um debilitamento parcial.

O homem que lia o bigode: "Eu entendo. mas o debilitamento agora é muito mais que parcial..."

Bigode:

- As naturezas mais fortes conservam o tipo, as mais fracas ajudam a desenvolvê-lo.

O homem que lia o bigode: "O tipo está mal conservado e involuindo".

Bigode:

- É, primeiro tem que haver o aumento da força estável.

O homem que lia o bigode: "É, a força está instável, e a instabilidade aumenta".

Bigode:

- Depois a possibilidade de se alcançarem objetivos mais elevados, por surgirem naturezas degenerativas...

O homem que lia o bigode: "As naturezas degenerativas estão aí, mas os objetivos mais elevados..."

Então o homem que lia o bigode adormeceu com o livro na cara, e a verdade não se mexeu.

As falas do bigode são extraídas de "Humano, demasiado humano", F.W. Nietzsche, Cia das Letras, aforismo 224.

O QUE É MEU, E TAMBÉM SEU

A burrice que você tem é a mesma que a minha. Eu a reconheço e sinto vergonha se não puder superá-la. Você ri de mim. E se acha esperto. Você será a seleção natural. O burro também é. Eu morrerei e desaparecerei. A verdade sobreviverá a nós dois.

Jack Keslarek, apud Fernando Pessoa. Jack Keslarek escreveu, Fernando Pessoa repetiu, e Jack Keslarek psicografou.

2.9.14

RETRATO DO MELIANTE

Descoberto.

O auto-retrato falado do meliante conhecido por Keslarek. Jack Keslarek.

Note-se o mosquito da dengue e o sorvete voador não identificado.

Quem reconhecer o elemento nas ruas, favor comunicar a polícia de Kansas City pelo número 911.

Precisamos parar com os crimes desse mosquito, que é perigoso.

O PEQUENO BATEDOR DE CARIMBOS



É verdade que não sou covarde. Então eu me pergunto: por quê tão frequentemente eu me pego agindo como um? Terá sido por coincidência que nasci tão próximo de Brás Cubas?  Teria Machado de Assis um elixir, ou apenas um panfleto realista, porcamente classificado em faculdades de letras? Da minha parte, entendo que Machado era um homem que queria se destruir de forma tão estapafúrdia que acabou ficando famoso.

Posso provar? Não posso. Posso ler as Memórias Póstumas de Brás Cubas. Não posso ler as Memórias Póstumas de Machado de Assis, tal como não nos chegaram as Memórias Póstumas de Sócrates e outros que tais (et caterva, como se diz por aí). Poderia sair ao menos gritando a postura covarde do positivismo? O Brasil falhou? Marimbondos de Fogo na Academia? Teria Augusto Comte se orgulhado?

Digo isso, sábio leitor, não para enlevar minha grande sapiência (que ademais não existe), mas são questões que me imponho, como flagelo: ora, se estou há quinze anos batendo carimbos, e se me especializei tão bem nessa bossa, como diriam nos anos sessenta, percebo que vivo na sociedade antiga, que valoriza os carimbos.

Vejo, com certa resignação, que todos os carimbadores (e há muitos carimbadores, impressores, artistas gráficos e que tais) se consideram Machados de Assis, e eu um dentre eles. Talvez a isso possamos chamar democracia, uma palavra que alegra a todos.

Sou um batedor de carimbos. Há batedores de carteiras. Há batedores de carimbos que são batedores de carteiras. Sou só um batedor de carimbos. O carimbo de que mais gosto: "NADA CONSTA". Às vezes um carimbo fala mais alto.

1.9.14

SOU AMIGO DOS OLAVOS

Vita Nuova

Se ao mesmo gozo antigo me convidas,
Com esses mesmos olhos abrasados,
Mata a recordação das horas idas,
Das horas que vivemos apartados!



Não me fales das lágrimas perdidas,
Não me fales dos beijos dissipados!
Há numa vida humana cem mil vidas,
Cabem num coração cem mil pecados!

Amo-te! A febre, que supunhas morta,
Revive. Esquece o meu passado, louca!
Que importa a vida que passou? que importa,

Se inda te amo, depois de amores tantos,
E inda tenho, nos olhos e na boca,
Novas fontes de beijos e de prantos?!

Olavo Bilac, in "Poesias"

31.8.14

EU, CACHORRO



Impotente e indigno para tamanha sabedoria, tomo as migalhas caídas do lauto banquete da inteligência, à mesa dos mestres, como meu obrigatório senso comum. Como sou repreendido por derrubar a taça, dirijo-me abanando a cauda, envergonhado da obra por mim produzida.

Olho para eles  com olhar comovido, não a comoção da malícia, mas a verdadeira comoção dos estúpidos que, creio, somos todos nós. Mas não é que os mestres teimam em não serem estúpidos? Agem e falam de diversas formas, na língua do ébrio, na língua do sóbrio, na dos idiotas e dos cachorros, como eu.

Tento entende-los e traze-los à realidade, pincipalmente quando solitários e rendidos por uma boa garrafa de scotch.

Sim, eu sou o cachorro, sou fiel. Mas fielmente fornicarei com tudo. Sou bestial.

Mas sou inocente. Sou incapaz de direitos e de obrigações. Tem gente querendo me representar na política, mas não me representa. Ninguém me perguntou o que penso, mas como não sei falar, não posso reclamar dos cachorros que querem falar em meu nome.

Sou cachorro, mas não sou idiota. Não muito. Deixo-me governar por impúberes e por débeis.

29.8.14

O ETERNO ENTRAR E SAIR



Os animais são uns bichos interessantes. Mas o tal do ser humano também. Micuinho e micuinha são dois animais chinchilentos. Pertencem àquilo que nos pet shops podemos denominar chinchilas.

Eles são meus amigos. Em verdade, dividem a casa comigo. Em verdade, não querem amizade comigo. Estão loucos para deixarem as gaiolas. Eu os mantenho ali porque sou cruel. Não os quero livres, manifestando sua superior inteligência que implantaria no mundo um regime político perfeito.

Agora, estão dormindo perfeitamente o sono dos justos, inconformados com a ração que lhes dou e planejando alguma revolução para serem libertados de suas gaiolas de concentração.

Eu realmente gostaria de libertá-los, para construírem sua sociedade perfeita do futuro. Mas sei que morrerão se eu fizer isso. Então não sei se os liberto, e os deixo morrerem por si mesmos, se eu próprio os mato, envoltos em gás Molotov/Ribbentrop, ou se continuo alimentando os bichos como tenho feito, impedindo sua fuga da gaiola em direção à morte.

As chinchilas vieram a mim por pedido de um amigo dileto, que delas não tinha como cuidar. Na realidade, eu não as queria, como elas a mim.

Estão loucas para procriar, algo com o que não posso compactuar.

Os seres humanos estão cada vez entendendo que sua inteligência está se aproximando da inteligência das chinchilas aqui de casa, minhas companheiras e confidentes. Não por um acréscimo na inteligência das chinchilas.

A coisa está ficando ridícula. Quando os animais são humanizados (não importa o avanço da ciência), o ser humano parece mais animalizado. Principalmente os defensores dos animais. Deviam ler mais Monteiro Lobato, o eugenista caboclo. Ao menos suas fábulas prestavam.

As minhas companheiras chinchilas não possuem espírito crítico. Isso é compreensível. Meus companheiros humanos também não. Isso é decadência.

A chinchila fêmea voltou para a gaiola. Eu vou para a cama.