31.8.14

EU, CACHORRO



Impotente e indigno para tamanha sabedoria, tomo as migalhas caídas do lauto banquete da inteligência, à mesa dos mestres, como meu obrigatório senso comum. Como sou repreendido por derrubar a taça, dirijo-me abanando a cauda, envergonhado da obra por mim produzida.

Olho para eles  com olhar comovido, não a comoção da malícia, mas a verdadeira comoção dos estúpidos que, creio, somos todos nós. Mas não é que os mestres teimam em não serem estúpidos? Agem e falam de diversas formas, na língua do ébrio, na língua do sóbrio, na dos idiotas e dos cachorros, como eu.

Tento entende-los e traze-los à realidade, pincipalmente quando solitários e rendidos por uma boa garrafa de scotch.

Sim, eu sou o cachorro, sou fiel. Mas fielmente fornicarei com tudo. Sou bestial.

Mas sou inocente. Sou incapaz de direitos e de obrigações. Tem gente querendo me representar na política, mas não me representa. Ninguém me perguntou o que penso, mas como não sei falar, não posso reclamar dos cachorros que querem falar em meu nome.

Sou cachorro, mas não sou idiota. Não muito. Deixo-me governar por impúberes e por débeis.

29.8.14

O ETERNO ENTRAR E SAIR



Os animais são uns bichos interessantes. Mas o tal do ser humano também. Micuinho e micuinha são dois animais chinchilentos. Pertencem àquilo que nos pet shops podemos denominar chinchilas.

Eles são meus amigos. Em verdade, dividem a casa comigo. Em verdade, não querem amizade comigo. Estão loucos para deixarem as gaiolas. Eu os mantenho ali porque sou cruel. Não os quero livres, manifestando sua superior inteligência que implantaria no mundo um regime político perfeito.

Agora, estão dormindo perfeitamente o sono dos justos, inconformados com a ração que lhes dou e planejando alguma revolução para serem libertados de suas gaiolas de concentração.

Eu realmente gostaria de libertá-los, para construírem sua sociedade perfeita do futuro. Mas sei que morrerão se eu fizer isso. Então não sei se os liberto, e os deixo morrerem por si mesmos, se eu próprio os mato, envoltos em gás Molotov/Ribbentrop, ou se continuo alimentando os bichos como tenho feito, impedindo sua fuga da gaiola em direção à morte.

As chinchilas vieram a mim por pedido de um amigo dileto, que delas não tinha como cuidar. Na realidade, eu não as queria, como elas a mim.

Estão loucas para procriar, algo com o que não posso compactuar.

Os seres humanos estão cada vez entendendo que sua inteligência está se aproximando da inteligência das chinchilas aqui de casa, minhas companheiras e confidentes. Não por um acréscimo na inteligência das chinchilas.

A coisa está ficando ridícula. Quando os animais são humanizados (não importa o avanço da ciência), o ser humano parece mais animalizado. Principalmente os defensores dos animais. Deviam ler mais Monteiro Lobato, o eugenista caboclo. Ao menos suas fábulas prestavam.

As minhas companheiras chinchilas não possuem espírito crítico. Isso é compreensível. Meus companheiros humanos também não. Isso é decadência.

A chinchila fêmea voltou para a gaiola. Eu vou para a cama.

25.8.14

CANTO I



"Canta-me a Cólera -ó deusa! - funesta de Aquiles Pelida,causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta e de baixarem para o Hades as almas dos heróis numerosos e esclarecidos, ficando eles próprios aos cães atirados e  como pasto das aves."

Homero, Ilíada, Trad. Carlos Alberto Nunes.


O profeta é o homem que julga os vivos com precisão, mas nunca estará vivo para executar a sentença.

ALGUM ESPÍRITO - Absinto e granadine XIV

 

Abriu a porta e jogou o casaco que não havia usado sobre o sofá. Acabara de chegar de um velório, do velório de um bom amigo que esqueceu o gás do fogão aberto, e teve a infelicidade de acender o cigarro. Não se pode afirmar que não teve cigarro aceso. Teve cigarro, botijão, metade da casa e o  próprio cara.

Começou a tocar o telefone, e então era um tal de "o Aclamênides morreu" de todos os lados. Aclamênides gostava de ser chamado simplesmente "Clemêncio". Achava que combinava mais com sua personalidade do que o nome original.

Pensando em Clemêncio, displicentemente, abriu o dicionário em qualquer página da primeira página em que pensou. Na que abriu dizia:

"Espiritualidade - s.f. Característica ou qualidade daquilo que é espiritual: a espiritualidade da alma.
Tudo o que possa demonstrar ou ter fundamento religioso e espiritual.
Que possui ou revela elevação, transcendência; sublimidade.
Teologia. Prática, exercícios devotos que têm por objeto a vida espiritual: livro de espiritualidade.
Religião. Característica do que demonstra devoção espiritual; religiosidade.
(Etm. espiritual + i + dade)"

A única palavra que o interessava ali era a da transcendência, por respeito aos vivos e mortos. A outra, que não estava ali, era o infinito. Sabia que zero é igual a zero. Sabia que espiritualidade era uma palavra sobre o que é espiritual. E agora? O Clemêncio era espiritual?

Equações que não se reduzem podem obsedar um homem pelo resto da sua vida. As equações são boas, resolvem muitos problemas, mas não os do espírito.

Clemêncio morrera, e ele, amigo de Clemêncio, descobriu que não podia aprender sobre espiritualidade, transcendência e infinito em um dicionário.

Para o transcendente, não havia ferramentas humanas. Para o infinito, não havia tempo.

Então, persignou-se. Resignou-se.

19.8.14

O GRANDE NINGUÉM: DESCONHECIDO ARISTOCRATA DO NADA


"Sinto falta de uma identidade, aí", ouvi há dez anos. Quem é essa personagem quase etérea, não pegajosa, mas lisa, escapulindo como o sabonete molhado? Essa personagem sou eu. Fugindo em mangas de camisa das terríveis vernissages que mais parecem o enterro da própria verdade.

 Andando pelas trilhas das cachoeiras do espírito e sendo arranhado e envenenado por tropicais espinhos desconhecidos.

Tem gente que gosta tanto do gato que gosta até do cocô do gato.

Não, aqui não falta identidade, Dóris. Talvez você nunca tenha me conhecido.

No mês de agosto, os gatos gostam de gritar sobre os telhados.

PETER PAN: O IMBECIL QUE NÃO QUERIA CRESCER, ou UMA CONVERSA DE BOTECO



- Peter Pan é um imbecil! - Gritava, sacudindo a garrafa vazia de uísque de forma pueril. O outro, mais velho, concordava sem diligência:

- Você só me dá razão para concordar.

O garçom se aproximou, com uma nova garrafa, cheia. Trazia  também um guardanapo escrito, que passou a ler com dificuldade:

- A senhorita da mesa ao fundo mandou esta mensagem: "a questão deste mundo não é quem é mais esperto. É quem é menos idiota".

Os dois se entreolharam e, a seguir, para a senhorita da mesa ao fundo.

Esta, ao deixar o bar, passou brevemente pela mesa em que se encontravam.  Seu sussurro era quase inaudível:

- Neste mundo, não existe o mais esperto. Existe o menos idiota.

14.8.14

ALGUM SILÊNCIO



Silêncio, silêncio,
Em meio a tanto barulho do nada.
Eu quero falar.
Quer falar uma mente atabalhoada.

Mas eu quero falar sem romper o silêncio.
Impossível? Quem há de asseverar? Não sei se consigo.

Acho mentira que possa calar falando,
e, tanto falando, acho que nunca se acaba calando.

Mas acho apenas que acho, em meio a tanto barulho do nada: certezas.
Eu preferiria Terezas, se tantas certezas não tivessem.
Andam falando muitas Terezas.

Dentre elas, eu,
Tereza sem convicção,
Cujo coração um pouco cresceu,
Talvez na empolgação
De alguma infecção.

Ao falar, tão poltrão,
Espero economizar
Alguma convicção.

Disso me fica a lição:
Se eu não conseguir calar
Que me saiba, ao menos, poltrão.

12.8.14

E O ANJO DEU-LHE UM TAPA



Ele estava andando pela trilha de Cruzeiro, sozinho. Uma bela lua com belas estrelas iluminavam o caminho, assim como a santa e a própria fonte d'água de Passa Quatro foram iluminadas pelo sol durante o dia. Isso fazia mais de quinze anos, e era como se lembrava da coisa.

Tinha sido muito jovem, lembrava, como a maioria dos jovens daquele tempo ainda pareciam ser, inobstante as rugas incipientes decorassem uma tez já não mais tão juvenil. Não há maturidade capaz de processar todos os dados, fatos e frêmitos da juventude.

Naquele dia, encontrou um anjo na estrada de Passa Quatro, após uns quantos lança-perfumes, et cetera e tal.

Tentou prosseguir, mas o anjo barrou-lhe a passagem:

- Então ouvi dizer por aí que tu és o futuro.

Impressionou-se com o "tu" e logo ponderou que o anjo havia de ser português, pois se expressava na segunda do singular.

- Não, eu sou apenas o Jack, de Taiaçupeba.

- Pois fica sabendo que és tu o futuro - falou o anjo, enigmaticamente.

- Mas que futuro? - perguntou, já meio assustado em ver um anjinho nada barroco.

- Bom, isso eu não vou poder dizer.

E o anjo deu-lhe um belo tapa antes de desaparecer.

11.8.14

UMA RISADA NA RUA

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Eu posso jurar que estava absorto em meus melhores pensamentos. Eu apenas pensava, brilhantemente, sobre a perfeição das esferas, quando o som da risada na rua entrou pela minha janela e interrompeu todo o processo mental. Não foi uma risada persistente, sou capaz de afiançar que não durou mais de cinco segundos e não se repetiu.

Eu, que dormi em hotéis de quinta categoria, hotéis que chegaram a desabar, eu que morei em quartos fétidos de pensões, eu que agora tinha uma confortável casa alugada de dois cômodos e quase não recebia visitas e possuía duas chinchilas - eu ainda podia ser derrotado por uma simples risada a um quarteirão de distância!

A perfeição das esferas se desvaneceu; como uma bolha de sabão tocada por uma criança serelepe, fui tocado pela risada da rua.

Nesse momento, me irritei e pensei em como agiriam todos os sábios: Sócrates, Casagrande, Serginho Chulapa, Chapolim Colorado e Dirceu Borboleta.

Safo, eu me sentia. Minha raiva me deu fome. Então fui procurar uma sopa Campbell. Só tinha Cup Noodles. Resolvi ir até Taiaçupeba, andar sobre os canos da Sabesp.

Só então me lembrei de que não possuía carro, e o Gurgel que o Edvaldo me emprestara estava parado na oficina, por falta de peças.

Fiz a bobagem de resolver descongelar a geladeira.

Para quem havia começado em uma contemplação das esferas, uma risada na rua gerou uma poça d'água na cozinha.

PEQUENAS (DES)AVENTURAS DO GRANDE NINGUÉM: NASCER PRO TRABALHO E O HOLOGRAMA


Ele não nascera para o trabalho. No entanto, era o que mais fazia: trabalhar. Ele saía do trabalho e, assim que chegava em casa, tomava a vassoura em mãos, ou o teclado do computador, ou o livro, ou o violão. Tudo isso dava trabalho.

Estava no show do Tim Maia. "Eu não nasci pro trabalho...". Lógico, Tim Maia já havia morrido, só que hoje eles tinham as técnicas dos hologramas, e com toda a ciência eles ainda buscam as coisas no além, e foram buscar Tim Maia no além (nada de errado nisso, se estão no além, não dá para busca-los no aquém).

Deus, seu melhor amigo, encontrava-se sentado à mesa, rodando o gelo no copo.

Hoje, eles tinham as técnicas dos hologramas, porque hoje é pretérito imperfeito.

Hoje, eles tinham corretores automáticos, porque não sabiam escrever. Mas sabiam fazer hologramas. Preciso desenhar?

"Big Nobody Jack" estava aí e, sozinho, tinha alguma envergadura moral. Não é qualquer um que faz Deus rir.

As coisas não estão nas entrelinhas, as coisas são um tapa da verdade na cara, e um chute na bunda da arte. Obliquidade incognoscível é estupidez; a de Capitu, não.

Havia obliquidade no holograma de Tim Maia. Pensou ter visto Michael Jackson.

Deus riu até cair da cadeira.

7.8.14

COZINHANDO MACARRÃO





A água fervia. Ele tinha arrumado algum macarrão. Estava sem dinheiro e queria fumar um cigarro. Como não tinha muita coragem de pedir, recolheu algumas guimbas do cinzeiro em frente à repartição. Com o tabaco da guimba e papel de pão, enrolou vinte cigarros e enfiou na caixinha dos que tinham acabado.

Comeu o macarrão sem sal. Sua timidez não permitia bater à porta do vizinho para pedir. O macarrão estava bom, visto que tinha fome. Para ele, como para o escritor, dois e dois serem quatro era também uma insolência insuportável, e ali estava ele desempenhando o papel de mujique tropical.

O mujique dos livros russos era reincidentemente insuportável em sua autopiedade, ele próprio era insuportável em seu papel de mujique tropical; não merecia sequer o adjetivo de patético. Procurava estar só, consciente e dolorosamente. Ele não merecia piedade.

Ficou com raiva de ter dado aqueles dois reais para a velha pedinte; após alguns segundos, arrependeu-se da raiva. Não teria dado aos dois reais melhor destino. O cigarro paraguaio que pudesse ter comprado, já teria fumado a essa altura do campeonato.

Lembrou-se de quando tentara se prostituir, e envergonhou-se por ter se prostituído e não haver recebido o pagamento. Por isso, naquela hora, não bateu à porta do vizinho.

Nesse momento não havia Sônia alguma a quem quisesse pedir perdão. Ele jamais fora Raskólnikov e não matara nenhuma velha rica. Dava socos no próprio rosto e na parede, o que lhe rendia fama na ortopedia do hospital público, pelas fraturas, e risos entre os jovens médicos.

Devia algo mais a si mesmo do que guimbas de cigarro e notas amassadas. Enquanto a mão inchava do último soco, adormeceu.

No dia seguinte, foi chamado de volta ao velho emprego.