Abriu a porta e jogou o casaco que não havia usado sobre o sofá. Acabara de chegar de um velório, do velório de um bom amigo que esqueceu o gás do fogão aberto, e teve a infelicidade de acender o cigarro. Não se pode afirmar que não teve cigarro aceso. Teve cigarro, botijão, metade da casa e o próprio cara.
Começou a tocar o telefone, e então era um tal de "o Aclamênides morreu" de todos os lados. Aclamênides gostava de ser chamado simplesmente "Clemêncio". Achava que combinava mais com sua personalidade do que o nome original.Pensando em Clemêncio, displicentemente, abriu o dicionário em qualquer página da primeira página em que pensou. Na que abriu dizia:
"Espiritualidade - s.f. Característica ou qualidade daquilo que é espiritual: a espiritualidade da alma.
Tudo o que possa demonstrar ou ter fundamento religioso e espiritual.
Que possui ou revela elevação, transcendência; sublimidade.
Teologia. Prática, exercícios devotos que têm por objeto a vida espiritual: livro de espiritualidade.
Religião. Característica do que demonstra devoção espiritual; religiosidade.
(Etm. espiritual + i + dade)"
A única palavra que o interessava ali era a da transcendência, por respeito aos vivos e mortos. A outra, que não estava ali, era o infinito. Sabia que zero é igual a zero. Sabia que espiritualidade era uma palavra sobre o que é espiritual. E agora? O Clemêncio era espiritual?Equações que não se reduzem podem obsedar um homem pelo resto da sua vida. As equações são boas, resolvem muitos problemas, mas não os do espírito.
Clemêncio morrera, e ele, amigo de Clemêncio, descobriu que não podia aprender sobre espiritualidade, transcendência e infinito em um dicionário.
Para o transcendente, não havia ferramentas humanas. Para o infinito, não havia tempo.
Então, persignou-se. Resignou-se.
Nenhum comentário:
Postar um comentário