25.8.14

ALGUM ESPÍRITO - Absinto e granadine XIV

 

Abriu a porta e jogou o casaco que não havia usado sobre o sofá. Acabara de chegar de um velório, do velório de um bom amigo que esqueceu o gás do fogão aberto, e teve a infelicidade de acender o cigarro. Não se pode afirmar que não teve cigarro aceso. Teve cigarro, botijão, metade da casa e o  próprio cara.

Começou a tocar o telefone, e então era um tal de "o Aclamênides morreu" de todos os lados. Aclamênides gostava de ser chamado simplesmente "Clemêncio". Achava que combinava mais com sua personalidade do que o nome original.

Pensando em Clemêncio, displicentemente, abriu o dicionário em qualquer página da primeira página em que pensou. Na que abriu dizia:

"Espiritualidade - s.f. Característica ou qualidade daquilo que é espiritual: a espiritualidade da alma.
Tudo o que possa demonstrar ou ter fundamento religioso e espiritual.
Que possui ou revela elevação, transcendência; sublimidade.
Teologia. Prática, exercícios devotos que têm por objeto a vida espiritual: livro de espiritualidade.
Religião. Característica do que demonstra devoção espiritual; religiosidade.
(Etm. espiritual + i + dade)"

A única palavra que o interessava ali era a da transcendência, por respeito aos vivos e mortos. A outra, que não estava ali, era o infinito. Sabia que zero é igual a zero. Sabia que espiritualidade era uma palavra sobre o que é espiritual. E agora? O Clemêncio era espiritual?

Equações que não se reduzem podem obsedar um homem pelo resto da sua vida. As equações são boas, resolvem muitos problemas, mas não os do espírito.

Clemêncio morrera, e ele, amigo de Clemêncio, descobriu que não podia aprender sobre espiritualidade, transcendência e infinito em um dicionário.

Para o transcendente, não havia ferramentas humanas. Para o infinito, não havia tempo.

Então, persignou-se. Resignou-se.

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