7.4.14

EMINÊNCIA PARDA



"Analisando assim secamente, o Turcíada parece de um absurdo quase raro. Aplique-se porém o mesmo processo ao Paraíso Perdido, desconte-se o estilo, arranquem-se os ornamentos, reduza-se o poema a seu assunto nu, e ter-se-á algo só um pouco abaixo do absurdo. Assembléias de anjos, discussões teológicas entre a Primeira e a Segunda Pessoa da Trindade, batalhas angélicas completam-se com estratégia tridimensional, artilharia infernal e o equivalente divino do tanque. Seria tudo mera questão de convenção literária, de uma imitação consciente da maquinação poética de outras eras? Seriam essas narrações insolitamente materialísticas sobre a vida no céu consideradas por seus autores como de um fantástico tão cabal quanto aquela fábula poética do jovem príncipe Syphilis que Fracastoro escrevera cem anos antes? Seria confortante acreditar nisso; mas desconfio que não encontramos justificativa para assim pensar. É provável que, de uma inefável maneira pickwiquiana, o Paraíso Perdido, o Turcíada e a Apoteose de Carlos V tenham sido concebidos por Ticiano, Frei José e Milton como algo mais que pura fantasia. No caso de Ticiano e de Milton tal era bastante compreensível; eram ambos, a seu modo, homens de religião esotérica. Não porém Frei José. Não há dúvida de que tivera um contato direto e imediato com a realidade suprema. Em sua Introdução à Vida Espiritual, descrevera a união da alma com Deus. Poucos anos depois, e evidentemente sem nenhum senso de incongruência, estaria escrevendo o Turcídada e escrevendo-o na convicção de que, assim fazendo, estava servindo, e de certo modo dizendo a verdade, ao Deus a quem vislumbrara num ato de contemplação. O fato óbvio é que seres humanos não encontram dificuldade em agasalhar, sucessiva ou simultaneamente, convicções entre si incompatíveis. Com efeito, tal contradição é a condição normal e natural do homem. E autoriza nosso livro a ter diferentes opiniões em diferentes momentos. Tendo, portanto, opiniões assim, ainda que não existam meios de reconciliá-las. A coerência perfeita só advém com a retidão perfeita, com a perfeita absorção da realidade suprema."

Aldous Huxley,  "Eminência Parda", p. 148, Editôra Saga, Rio de Janeiro - GB / 1967

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