31.5.14

SONETO DO IDIOTA



Não soube o que fazer do meu bom ócio
E pus-me a passear na traquitana,
Achando-me a fazer um bom negócio
Em minha natural tendência humana.

E agora, apartada a lida insana
Para ser o que eu sou, lindo beócio,
Bebendo a valer, com a Joana,
Achando dos prazeres ser bom sócio.

Tal Chronos que engolia os seus filhos,
Qual, Falstaff levava nada a sério,
Um idiota que come sucrilhos.

Na estrada que me leva ao cemitério,
Jumento, eu correndo atrás do milho.
Em minha estupidez não há mistério.




28.5.14

ABSINTO E GRANADINE XI: JOGO DE DOMINÓ



Não pretendo me atirar ao poço com tamanha frequência. Para o poço, melhor que lhe seja atirado um balde, e dele recolhida água límpida e pura.

Mas isso não é sobre mim.

Alguns velhos jogavam dominó em uma praça, e uma peça se perdeu, despercebida.

O espírito da alma da peça do jogo de dominó se havia perdido, juntamente com a própria peça. Os velhos sobre a mesa da praça se entreolharam, a seguir procuraram a peça, e enfim se levantaram e retornaram para suas casas em silêncio. Afinal, não dava para jogar dominó sem a peça faltante.

No momento da despedida, o silêncio os unia. Separaram-se em silêncio, cada um com sua própria experiência do espírito da alma da peça do dominó. Não me lembro se era o 2X5. Ou o 6X6. Também não dava pra dizer o que se passava em cada vida, sabia que eram ou casados, ou viúvos, ou solteiros, ou qualquer coisa como estado civil, idade, cor, dentes ou não, taxistas, advogados, crentes ou incréus.

A peça de dominó os unia com o espírito de sua alma. Sumida a peça, sumia o espírito de sua alma (da peça, do dominó, dos velhos estarem reunidos, eu sei, eu mesmo sou velho).

Apenas Argemiro rompeu o silêncio, comprometendo-se a trazer um novo jogo de dominó, com a peça faltante.

Assim, no dia seguinte, voltariam à praça para jogar dominó. Com  o dominó do Argemiro, a peça faltante também voltaria. Com a peça faltante, o espírito de sua alma.

26.5.14

O GRANDE NADA: VISÕES DO MÉXICO





Visões do México me seduzem, no momento, e a muitos seduziram.
São carinhosas como a música que me remeteu a um romantismo tardio e inócuo; ao menos me garantiu contra um modernismo promíscuo com o qual flertei.
E até nesse modernismo eu via apenas cactos, e não via Castanheda. Via desertos e sentia o suor na testa, mas não via Rivera, nem Frida Kahlo, tampouco Trotski.

E quando eu criar uma marca de cerveja mexicana, ela se chamará Trotski.

Ai, soi louco por ti, América. Tuas chapadas, tuas planícies, teus desertos, tua aridez e tuas florestas túmidas, mas, Pueblo, afasta de mim esse cálice.

Tu, Pueblo, fácil de enganar, ah, do Novo México até a Patagônia...como sempre te deixaste levar pelos piores?

Que fizeste de mim, América? Como agora, cheio de ti, poderei chegar à Austrália?

Ah, Pueblo, larga pra lá as teologias, pondo-te a rezar o terço.

Conheces a epístola: sim, a fé e a esperança.

Deixa-me amar-te, América. Sobretudo, não me sigas. Eu não sou Jesus.

24.5.14

PEQUENA VERDADE ESTÚPIDA





"Se o chão se abriu sob os seus pés".
Ficou louco. Não importa em que você acredita.
Quando acabou a cocaína, de repente, ela tinha mais.
Ela ficou desconcertada quando ele começou a chorar em um canto da cama.
Ele olhou pela janela, como se pudesse o mundo retornar à sua vida, cotidiano.
Mas já não era o mesmo, como não fora o mesmo um segundo atrás, e no segundo anterior,
Em sequências de eternidades de um segundo
Em que se passaram vinte anos.
Estupidamente abriu um livro e apenas olhava as palavras que eram tinta no papel,
E o papel era macio e a tinta havia secado como seu coração.
E ela se levantou e foi embora,
E se passaram vinte anos.
Qual era o nome dela, ninguém sabe.
Poderia ser qualquer nome e ele nem se lembrava de seu rosto.
Apenas do cheiro do papel do livro cujo nome não se lembrava, sequer o lera,
E nunca soube o que nele estava escrito.
E isso também era verdade.

19.5.14

PALAVRAS SURREAIS





Palavras surreais de um observador da pós-modernidade.

Lembro-me das palavras e de como ri quando li o texto de Carlinhos Oliveira, sobre os elefantes de Ho-Chi-Minh bombardeados com napalm.

Isso não fazia sentido, e Clarice Lispector adorava.

Como não saber, com o rasgo de Stanislaw, que às vezes uma ausência preenche uma lacuna? Isso já parece dizer alguma coisa. Tia Zulmira sabe que é a mesma coisa: "filho, não vá àquela festa, eles não querem te ver por lá, nem pintado de ouro".

Como faz sentido uma tia qualquer dizendo para não utilizar neosoro, porque supostamente estou sendo tratado com antidepressivos tricíclicos! Como reagiria eu a agentes simpatomiméticos?

Como dizia eu a mim mesmo que o tempo gotejava em certos momentos, como as gotas de uma torneira quase fechada? Queria dizer eu alguma coisa, ah, queria, e ademais o encanamento rompeu inundando a casa, e aí o tempo passou bem rápido.

Sim, a parede ao lado é branca, e percebo nela vários tons de cinza, pois choveu muito ano passado, e a água se infiltrou, e água quer dizer água, mas é também palavra, e vários tons de cinza é quase um livro pornô para mulheres.

Eu acerto no português até quando erro. Pois esta é a língua do português, inclusive a do português da piada, o que só existe no Brasil. Porque o Brasil um dia precisou rir de si mesmo, mas não teve coragem, e inventou um personagem chamado "português da piada" para rir de si mesmo, sem dar muito na telha.

Palavras...

Logo eu que sou um homem de poucas palavras, mas falo muito e demoro a responder. Que querem de mim, se não sou exatamente bom com as palavras? Tenho um pé atrás com elas e com as peças que pregam através de pregadores de peças. São pregadores de peças também os ilustres ferreiros e marceneiros. Para quem tem apenas um martelo, tudo é prego, até as palavras. Ou os rebites.

Mas eu não sou Nietzsche, e não filosofo empunhando o maldito martelo, posto que nunca filosofo e quase nunca martelo e não quero ser heroico, porque o Grande Ninguém caminha para lugar nenhum.

E sabemos que, na divertida história de Carlinhos Oliveira, se os elefantes na trilha de Ho Chi Minh forem do norte para o sul, eles serão comunistas, e sabemos que foi exatamente o que ocorreu, e depois bastou um feriado no Camboja com Dead Kennedys.

Palavras surreais de um observador da pós-modernidade.




 

O DIABO É IRÔNICO E RETÓRICO



(...)"É verdade! mas não tomeis à letra;
Serve a palavra onde as ideias faltam.
Disputa-se muito bem só com palavras,
Com palavras sistemas se constroem,
Na palavra se crê com fé profunda,
Da palavra um iota não se tira".
 
Mefistófeles, in Fausto, Goethe.


13.5.14

CERTOS AMIGOS

Entre a fé e a descrença
Eu estive pendulado.
Contemplando o distante
E descrendo, ao meu lado.

Entre a dor e a indiferença,
Em platitude ou torturado
Por depois e pelo antes,
Pelo certo e pelo errado.

Entre os vícios e virtudes
Eu estou mal-arranjado.
Peço a Deus que me ajude.

Se eu estou mal-ajambrado,
Eu tampouco vou ser rude.
Peço a Deus, fique ao meu lado.

Ajude.

AURORA (em grego, Éos)



Filha de Titã e da Terra, ou, segundo Hesíodo, de Téia e Hipérion, irmã do Sol e da Lua. Essa deusa abria as portas do dia. Depois de ter atrelado os cavalos ao carro do Sol, ela o precedia no seu. Tendo se casado com Perses, filho de um Titã, teve por filhos os Ventos, os Astros e Lúcifer.

Enamorado do jovem Titono, filho de Laomedonte e irmão de Príamo, raptou-o, desposou-o e dele teve dois filhos, cuja morte lhe foi tão sensível que suas lágrimas abundantes produziram o orvalho da manhã. Um deles foi Mêmnom, rei da Etiópia, o outro Hermatíon.

Seu segundo esposo foi Céfalo, que ela tomou de Prócris, filha de Erecteu, rei de Atenas, e com quem teve um filho. Depois raptou Órion e vários outros.

Os antigos representam-na vestindo uma túnica cor de açafrão, ou amarelo-pálida, com uma vara ou uma tocha na mão, saindo de um palácio de prata dourada num carro do mesmo metal com reflexos de fogo.

Homero lhe atribui dois cavalos, a que dá os nomes de Lampo e Faetone, e pinta-a com um grande véu escuro jogado para trás e abrindo com seus dedos rosados a barreira do Dia. Outros poetas lhe atribuem cabelos brancos, ou mesmo Pégaso como montaria.

Algumas vezes representam-na com os traços de uma jovem ninfa coroada de flores e montada num carro puxado por Pégaso. Com a mão esquerda, segura um archote e com a outra espalha uma chuva de rosas. Numa pintura antiga, ela expulsa a presença da Noite e do Sono.

P. Commelin, Mitologia Grega e RomanaMartins Fontes, 2000, pag.85, tradução: Eduardo Brandão.

11.5.14

O LUGAR COMUM






O destino do poeta é a merda.
Pensamentos sublimes  se acabam em pombos.
Pior para quem acha que a verdade herda.
Na merda dos pombos está seu desassombro.

Olhaste ao redor, imbecil esperança?
Olhaste ao redor, imbecil desencanto?
Olhaste com tez de espantada criança
Violada no encanto, por quê choras tanto?

Mereço algum vão, algum vil soneto?
Mereço cantar algum pagão canto?
Não brigues, eu me calo, prometo.

Nas sílabas erro, me desencanto.
Nas sílabas, besta que sou, eu me meto.
Eu não sou poeta, no entanto.

A estátua do poeta, pequena cagarra.

CRÔNICAS DO GRANDE NADA: SE EU NÃO MORRI AMANHÃ, MORRI DEPOIS DE AMANHÃ




Eu tinha vinte anos.

Olho no espelho as bolsas inchadas em meus olhos e concluo que ainda tenho vinte anos, exceto pelas bolsas sob os olhos.

Eu ainda sou um idiota, mas um idiota um pouco diferente.

A história da vida se adianta dia a dia, mas o poder de uma bela crítica não consegue acompanhar essa evolução, e a estupidez pariu revoluções estúpidas e violentas.

Em algum momento tenho que rir de mim mesmo, e rio.

Que eu quis ir para longe, mas não tenho tempo nem espaço para isso.

Quem tem ouvidos, ouça.

8.5.14

O DESTINO DOS POETAS






OUVIR ESTRELAS

Ora ( direis ) ouvir estrelas!
Certo, perdeste o senso!
E eu vos direi, no entanto
Que, para ouví-las,
muitas vezes desperto
E abro as janelas, pálido de espanto

E conversamos toda a noite,
enquanto a Via-Láctea, como um pálio aberto,
Cintila.
E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas?
Que sentido tem o que dizem,
quando estão contigo? "

E eu vos direi:
"Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e e de entender estrelas.

Olavo Bilac

ABSINTO E GRANADINE X: FRAGMENTO DA VIDA

Naquela semana, eu estava cansado. Tentava ser metafísico, mas não passava do Esteves.

Havia alguns dias o episódio da bomba que explodiu ao meu lado e da tentativa de assalto que sofri não passavam por minha garganta. Lembro-me de colocar a caneta no copo e tentar escrever letrinhas na sopa. Eu não estava me divertindo, eu não estava fazendo arte, eu apenas estava com raiva.

Porque o cego não ouvia, e o surdo não enxergava, e o bêbado não bebia!

E o revolucionário não tinha sede de sangue e, cúmulo do absurdo, os idiotas eram "os pensadores".

Isso era o mundo real.

Eu queria alguma ordem, mas idiota era eu.

Havia uma cuspideira que pertencera a Getulho. Um vizinho meu. Getulho com "lh".

Getulho havia morrido. Mataram ele por suicídio (já disse que o idiota era eu).

Peguei a cuspideira e escarrei nela o sangue costumeiro. Agora, eu não precisava mais cuspir no chão de terra batida.

4.5.14

QUANDO MORREREM ESTES VERSOS, TUDO MAIS TERÁ MORRIDO


       

       
       TABACARIA
    Não sou nada.
    Nunca serei nada.
    Não posso querer ser nada.
    À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

    Janelas do meu quarto,
    Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
    (E se soubessem quem é, o que saberiam?),
    Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
    Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
    Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
    Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
    Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
    Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

    Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
    Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
    E não tivesse mais irmandade com as coisas
    Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
    A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
    De dentro da minha cabeça,
    E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

    Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
    Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
    À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
    E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

    Falhei em tudo.
    Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
    A aprendizagem que me deram,
    Desci dela pela janela das traseiras da casa.
    Fui até ao campo com grandes propósitos.
    Mas lá encontrei só ervas e árvores,
    E quando havia gente era igual à outra.
    Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

    Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
    Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
    E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
    Gênio? Neste momento
    Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
    E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
    Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
    Não, não creio em mim.
    Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
    Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
    Não, nem em mim...
    Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
    Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
    Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
    Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
    E quem sabe se realizáveis,
    Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
    O mundo é para quem nasce para o conquistar
    E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
    Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
    Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
    Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
    Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
    Ainda que não more nela;
    Serei sempre o que não nasceu para isso;
    Serei sempre só o que tinha qualidades;
    Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
    E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
    E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
    Crer em mim? Não, nem em nada.
    Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
    O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
    E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
    Escravos cardíacos das estrelas,
    Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
    Mas acordamos e ele é opaco,
    Levantamo-nos e ele é alheio,
    Saímos de casa e ele é a terra inteira,
    Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

    (Come chocolates, pequena;
    Come chocolates!
    Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
    Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
    Come, pequena suja, come!
    Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
    Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
    Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

    Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
    A caligrafia rápida destes versos,
    Pórtico partido para o Impossível.
    Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
    Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
    A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
    E fico em casa sem camisa.

    (Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
    Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
    Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
    Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
    Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
    Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
    Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
    Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
    Meu coração é um balde despejado.
    Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
    A mim mesmo e não encontro nada.
    Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
    Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
    Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
    Vejo os cães que também existem,
    E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
    E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

    Vivi, estudei, amei e até cri,
    E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
    Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
    E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
    (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
    Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
    E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

    Fiz de mim o que não soube
    E o que podia fazer de mim não o fiz.
    O dominó que vesti era errado.
    Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
    Quando quis tirar a máscara,
    Estava pegada à cara.
    Quando a tirei e me vi ao espelho,
    Já tinha envelhecido.
    Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
    Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
    Como um cão tolerado pela gerência
    Por ser inofensivo
    E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

    Essência musical dos meus versos inúteis,
    Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
    E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
    Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
    Como um tapete em que um bêbado tropeça
    Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

    Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
    Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
    E com o desconforto da alma mal-entendendo.
    Ele morrerá e eu morrerei.
    Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
    A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
    Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
    E a língua em que foram escritos os versos.
    Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
    Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
    Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

    Sempre uma coisa defronte da outra,
    Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
    Sempre o impossível tão estúpido como o real,
    Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
    Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

    Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
    E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
    Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
    E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

    Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
    E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
    Sigo o fumo como uma rota própria,
    E gozo, num momento sensitivo e competente,
    A libertação de todas as especulações
    E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

    Depois deito-me para trás na cadeira
    E continuo fumando.
    Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

    (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
    Talvez fosse feliz.)
    Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
    O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
    Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
    (O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
    Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
    Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
    Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

    Álvaro de Campos, 15-1-1928

O GRANDE NADA E A GRAÇA: É DE GRAÇA

Não é por não se ser ninguém que não se tem testemunho válido. Talvez pelo contrário. Apenas uma opinião pode validar um testemunho: a opinião da verdade.

Tanto me faz morrer no ostracismo.

Que acham, os homens mortos que hoje são tão celebrados pelos idiotas, acerca dessa celebração? Que acham Nietzsche, Van Gogh, Fernando Pessoa? Que acha Rimbaud?

Já não falo aqui de pessoas como Goethe e Voltaire, célebres em vida, falo aqui desse Grande Ninguém, que caminha para lugar nenhum. Esse homem que se queda perplexo ante incultas produções da mocidade, uma vez que o mundo é feito de jovens, por conseguinte, de idiotas.

Homens que gritam verdades a ouvidos moucos, nem os séculos os conseguem fazer entendidos por crianças incultas. Malversados na boca de idiotas, têm seus nomes achincalhados por imbecilidades exatamente ditas em seu nome.

"Muitos virão usando o meu nome e dizendo: 'sou eu'", já era a frase do próprio nazareno.

E Sócrates nada sabia, e esse não era seu orgulho, mas sua verdade.

Milhares de anos gritando verdades ao alcance do ouvido mais surdo, e retardados falam em seis ou sete línguas, com as árvores!

Oh verdade, que precisou para que se escancarasse tua prostituição em mãos de proxenetas tão baratos?

Eu vos digo o que sei: eu sou o Grande Ninguém. Graças a Deus.

3.5.14

Meu Ser Evaporei na Luta Insana




Meu ser evaporei na luta insana
Do tropel de paixões que me arrastava:
Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim quasi imortal a essência humana!

De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos

Deus, ó Deus!... quando a morte a luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.

Bocage, in 'Rimas'

MANHÃ OUTONAL








Sólida manhã outonal,
Sólida manhã, solidão.
Demoram-se a secar, no varal
As roupas que lavei no verão.

Velho bule, o café a passar,
Exala agradável olor;
Esforço-me a dissipar
Da noite, imagens de horror.

Aurora se põe a chorar
Enquanto seu carro traz luz,
No pórtico a iluminar
A imagem do Senhor Jesus.

É a tenda, é o descanso, é o lar,
É a oração ante a cruz,
É Ulisses a descansar
Da campanha a que o dever conduz.

Breve hiato que traz
Descanso de sonhos malsãos.
De outono, manhã fugaz,
De café, o perfume dos grãos.

Sólida manhã outonal,
Sólida manhã, solidão,
Demoram-se a secar no varal
As roupas que lavei no verão.