31.7.14

O FILHO DE ANDRIÉIEVITCH



"Sou um homem doente...sou mau. Não tenho atrativos. Acho que sofro do fígado. Aliás, não entendo bulhufas da minha doença e não sei com certeza o que é que me dói. Não me trato, nunca me tratei, embora respeite os médicos e a medicina. Além de tudo, sou supersticioso ao extremo; bem, o bastante para respeitar a medicina. (Tenho instrução suficiente para não ser supersticioso, mas sou.) Não, senhores, se não quero me tratar é de raiva. Isso os senhores provavelmente não compreendem. Que assim seja, mas eu compreendo. Certamente, não poderia explicar a quem exatamente eu atinjo, nesse caso, com minha raiva; sei perfeitamente que, não me tratando, não posso prejudicar os médicos; sei perfeitamente bem que, com isso, prejudico somente a mim e a mais ninguém. Mesmo assim, se não me trato, é de raiva. Se o fígado dói, que doa ainda mais".

Fiódor Mikhailovitch Dostoievski, Notas do Subsolo, L&PM, 2010, pag. 11.

29.7.14

O ESCRITOR IMPOSSÍVEL



Eram dez horas da noite, e uma luz lânguida iluminava sobre a escrivaninha o mata-borrão. Caneta à mão, tinteiro a postos, tinha dificuldades para compor o texto. Devia estar em pé cedo, a repartição não podia esperar.

Apesar dos pesares, tinha que ser um escritor russo. Não queria escrever sobre si mesmo, embora fosse isso que exatamente sempre fizesse.

Matar um borrão.

Escritor russo.

Quantas vezes os escritores russos mataram pessoas?

Não queria ser mais russo, nem escritor.

Não era a mesma coisa, pois não poderia deixar de ser russo (no máximo poderia fingir que deixou), mas poderia deixar de escrever bobagens, tanto faz, em russo ou francês. Já há escritores russos, ótimos e péssimos, em demasia.

Bebeu um gole da vodca.

Repentinamente, uma ideia iluminou o candeeiro.

E se ele se transformasse em escritor brasileiro?

28.7.14

O GRANDE NINGUÉM ILUMINISTA



De como o Grande Ninguém encontrou a Deus.

É que ele tinha ido morar ali há algum tempo. Precisava achar um bar onde pudesse ficar só. Impossível. A praça era cheia de teatros. Já ouvira falar de fauna humana, mas aquilo era a maior biodiversidade que já tinha visto.

Sentou-se à mesa colocada na calçada. Naquele tempo a prefeita queria tirar as mesas da calçada.

Com os meses passando e as mesas dentro e fora, foi percebendo que conseguira seu intento e, inobstante a multidão de gêneros e espécies em trânsito, viu-se sozinho e treinou obstinadamente algo em que era inábil: a contemplação. Se, como dizia Goethe, o talento se aprimora na solidão e o caráter na agitação do mundo, então ele estaria ali aprimorando tudo.

Pegou o jornal colocado à mesa. Abriu na tirinha do Hagar, em que um cara está dando socos na própria cara, e o outro pergunta: "que é isso?". Aí o cara responde: "o homem tem que vencer primeiro a si mesmo".

É que o Grande Ninguém é também idiota.

De como Deus aparece

Deus não apareceu. Ele estava lá o tempo todo:

- Homem de pouca fé!

Ah, mas ele não era ninguém. Era o Grande Ninguém. E Deus gostou dele. Não muito.

Um pouco do Grande Ninguém

O Grande Ninguém era ambíguo, como todos os que tentavam disfarçar a ambiguidade. Mas Deus perdoava. E o Grande Ninguém dava voltas para retornar a si mesmo, idiota que era, e Deus ria, e o Grande Ninguém ria, e depois chorava, inconsolável.

O Grande Ninguém era iluminista. Hoje é apenas um idiota. E não vê muita diferença. Deus não é uma tábua de salvação; uma tábua de salvação pode ser um jacaré em forma de tábua de salvação: se Deus é salvação, não pode ser tábua. Nem tudo é tábua.

Dessa forma, o Grande Ninguém fazia Deus rolar de rir com sua filosofia de Quincas Borba. E assim o puro humanismo afundava para além do homem. Humanismo 'on the rocks' ?

O SORRISO DO TATU



Disse-lhe o professor, naquele dia memorável:

"A realidade é mais complexa que o bem e o mal. Você estuda quarenta anos para começar a entender alguma coisa".

Sim, foi quando ele voltou para a casa de chão batido de sua avó. Na panela, ela cozinhava o tatu. No chão, pelado, o seu irmão mais novo, seis meses de idade, chorava.

- Que ele tá chorando, vó?

- Eu botei o tatu pá cozinhá. Tatu amigo dele.

Silenciou-se, vez que jamais recriminaria sua vó por cozinhar um tatu incauto que desse sopa por ali. Sopa de tatu era a especialidade da velha.

- Tó o dinheiro, vó - e estendeu a mão com vinte reais. Ela pegou e escondeu rapidamente sob o vestido. Ele olhou a velha e quis chorar, mas a vó não gostava de homem chorando. O nenê já não chorava mais. Nem sabia que seu amigo estava na panela. Nenês se adaptam facilmente. Foi o que comeu com mais vontade a sopa de tatu com farinha velha.

Mas a fome do bebê não saciava. Logo chorou de novo. Havia de ser lombriga.

E lembrou-se do colega do colégio que inventou um deus que só comia mato e defendia a natureza e não comia tatu. Devia ser o deus dos que nunca sentiram fome. Que até o deus índio da sua vó adorava uma capivara.

A criança continuava chorando. Sobre a mesa, todos comiam, um pequeno pedacinho de carne para cada um. À porta da casa, vislumbrou a curiosa cabeça de outro tatu, enxerida. O tatu, parece que sorria.

21.7.14

O GRANDE NINGUÉM: MONOGLOTA

Protoglota. Assim se chamava o poeta das ruas. Ele era oriundo da tribo dos nhamchacharas, e vivia cercado por antropólogos e sociólogos. Em sua sabedoria abria os braços:


- Sou construtivista e desconstrucionista! Em três línguas!

Os antropólogos e sociólogos aplaudiam, diagnosticando: "Eis aqui o Übermensch."

O Jornal das oito, que não sabia se era de direita ou de esquerda, filmou tudo.

Todos acharam aquilo lindo.

Fez um grande sucesso.

O Grande Ninguém, sentado à porta do bar, monoglota que era, por seu lado decretou a própria derrota: o homem estava superado.

14.7.14

O PACIENTE DO PSIQUIATRA



- Doutor.
- Como vai?
- Mal, doutor. Minha memória...Os remédios não ajudam.
- Vamos trocar os remédios.
- Mas eu quero lembrar aquela palavra...aquela do tempo que passa.
- A priori kantiano.
- Não. Aquele relógio, troço egípcio, babilônico, sei lá. Os remédios estão me deixando esquecido.
- Mas você não queria esquecer o sofrimento?
- Queria esquecer o sofrimento, mas não todo o resto. Para isso não precisava remédio. Era só eu continuar bebendo...
- Beber é vício. Você não está bem.
- Obrigado, doutor.
- De nada.
- De nada, não, eu estou pagando caro.
- Vamos aumentar a dose. Trocar o remédio. Você está refratário ao tratamento.
- Doutor?
- O que é?
- Lembrei que estou sem dinheiro. Não posso te pagar.
- Melhor vir se consultar duas vezes por semana. Venha na quinta e aí você me paga.
- Estou curado. Lembrei a palavra. Acho que acabou meu tempo.
- Ãhn?
- Ampulheta.

11.7.14

O GRANDE NINGUÉM, A LUZ QUE NÃO ACENDE, NEM ASCENDE



Encontrava-se junto ao urinol, urinando.
Nesses momentos, divagava sobre o ato de urinar, urinando. E o urinar não era um espetáculo da verdade? Aparentemente, urinava, verdadeiramente, urinava.
Era verdade que urinava, ou apenas parecia que urinava? Urinava em essência, ou em aparência?

Reticências.

Acendeu o cigarro. Estava em casa e o chinchila macho o desafiava a colocar mais uma uva passa. Aquele chinchila macho, não era possível, havia lido Nelson Rodrigues.

Reticências.

Nós, os Quincas Borbas, assinamos Machado. Nós, os Esteves, assinamos Pessoa.

O chinchila fêmea me observa, apaixonada.

Reticências.

Estava com fome, e parecia D. João VI, com aquela coxa de frango na mão. Cadáveres humanos estavam mais na moda.

Reticências.

Sentiu-se culpado e assassinou três pés de alface. Sem chulé. Sem reticências.

Todos têm razão. Só que as coisas acontecem de forma diferente da razão de todos. Quem tem razão? E eu? Não faço parte de todos?

Sem reticências.

Gosto de Jesus, e por gostar dele tento não colocar palavras em sua boca. O pior idiota engana a si mesmo, e ainda se acha esperto. "Maldito o homem que confia no homem".

Algumas reticências. Sou eu quem está falando?

Alguns querem porque querem melhorar o mundo, e só pioram.

Cansaram do juízo final e decidiram eles mesmos julgar finalmente.

Demorou demais pra morrer. Vamos solucionar a vida, sem sequer um dicionário.

Vamos mudar o mundo, seja lá o que isso for.

Vamos ser idiotas. A solução da vida, nós fazemos.

"Eu tenho um projeto para uma sociedade futura melhor - a minha!" - isso me disse alguém, e eu não podia sequer ironizar.

Então preferi olhar pra cima, ia chover, ou não?

Então, o homem acendeu a lâmpada de querosene, ele não queria iluminar o mundo. 

Queria ganhar seu dinheiro. Dependendo de quem pagasse, acenderia para Deus ou o diabo.

7.7.14

O GRANDE NINGUÉM: PINTOR E ESCRITOR



E eu, o grande ninguém que caminhava para lugar nenhum, cabelos soprados pelos fortes ventos, nunca épicos, nunca trágicos, mas dramáticos como o seu tempo, suplicava por um Zéfiro que me desobscurecesse a vista. Meus cabelos e os fortes ventos faziam muito drama.

E esse drama era uma espécie de emulação do meu tempo. A concorrência na dramatização era demasiada, e eu pensava honestamente em desistir de toda essa porcaria.

Porque se drama havia, ele se repetia como farsa, e a mim restava refugiar-me no silêncio da pura contemplação. Mas ai de quem decide isso morando no centro da grande Lagarta chamada Cidade, e precisa lá buscar seus caraminguás fugidios: esse não está pronto para a contemplação e para a fome. Está ali para desmascarar.

Então arrumei um emprego em uma loja de sapatos, e ali mesmo comecei a desmascarar tudo: em quinze dias eu não vendera sequer um par, e me esmerava em proclamar os defeitos do produto que, ademais, era mesmo uma porcaria.

Depois, não vendi nenhuma assinatura de jornal. "Não, senhora, não informam de forma isenta". "De direita, de esquerda, que importa, todos mentem, uns mais, outros menos, mas mentem!". "Não, meu senhor, jornais não oferecem espírito crítico, nem as universidades!".

Mais uma vez fui demitido, nunca desmentido. E, obviamente, não logrei arrumar emprego em nenhuma universidade. No dia da última demissão, eu me cansei de mim e fui ao bar.

E sentei-me com Deusídio, o pintor, e Deusdete, o escritor, no bar ao lado do prédio conhecido como "A Grande Minhoca Modernista". Ali, no bloco F, sempre se reunia a "Cooperativa dos Analfabetos Funcionais", que eu gostava de frequentar, mas onde todos me olhavam estranho, como se eu fosse um alienígena, não porque eu não era analfabeto, mas porque eu não era funcional.

Dedê e Dedé me chamaram para sentar. Eu realmente não tinha dinheiro algum para beber naquele dia. Então eles mandaram-me calar a boca e me sentar. Sentei-me.

- Ei, Jack, você está sem trabalho, de novo?

- Não, velho, eu sempre tenho trabalho, o que não tenho é dinheiro.

Encheram o meu copo de cerveja. Quis dizer que estava sendo suportado por Deus, mas sabia que eles não queriam nem saber de falar em seu pai. Resolvi mudar de assunto:

- E a arte que estão fazendo, estão conseguindo algum dinheiro?

- Não, não, porque sabemos fazer o produto, a arte, mas não sabemos fazer o marketing - Dedê respondeu com uma resoluta cara de ressentimento. - sei que pareço ressentido, mas não confiamos nesses abutres. Dedé continua consertando televisores e eu pintando uns retratos.

Nos abraçamos e nos despedimos. Eu, o escritor e o pintor. Algum de nós tinha alguma consciência. Íamos a lugar nenhum, imediatamente. Não éramos iguais. Nem muito diferentes.

2.7.14

E O GRANDE NINGUÉM REENCONTRA DEUS



"Não me creiam. Não me sigam. Estou certo de que são capazes de pensar por si mesmos."

"Pensem duas vezes. Vocês não estão entendendo o que digo. Não, senhora, se acalme, não grite!"

E foi assim que encontrei o homem em seu novo emprego: mestre de cerimônias do circo, apresentando o número com os leões. Quando me viu, um sorriso enorme se lhe abriu no rosto. Eu realmente não entendi o sorriso. Jamais sorriria ao encontrar comigo.

Dei-lhe um aceno, e fui diretamente ao bar, onde o velho Deus estava sentado, esperando para mais uma vez, e com razão, me ridicularizar.

Tão logo me sentei, minha bexiga ordenou-me: ao banheiro. Deus guardou-me a carteira: "vai mijar logo, bêbado do caralho!"

E fui. Não sei de onde o privilégio dessa intimidade de Deus para comigo, mas em nenhum minuto achei prudente devolver-lhe, uma vez que ele era quem ele era, eu sabia disso, e nunca gostei de brincar com Deus. A ignorância deve seu status à própria natureza.

Na volta, meu amigo Deus puxou-me a cadeira. Nunca foi de muitas palavras, gostava era de me ouvir.

Dentro do circo era quente, mas meu corpo estava gelado. Deus mandou vir duas pingas:

Beba só essa. Vá para casa dormir. Tente não pensar. Não é seu forte.

O leão havia sumido. Meu amigo, mestre de cerimônias, também. Levantei-me e paguei a conta. Deus estava comigo.

Fui embora cambaleando, pensando por quê Deus ainda me aguentava.

O GRANDE NADA - PROCURANDO A ESTUPIDEZ - E ACHANDO



Por onde ando, só tenho encontrado sábios.
Por onde ando, só tenho encontrado espertos.
Por onde ando, só tenho encontrado inteligentes.
Por onde ando, só tenho encontrado eruditos.

São os mesmos, para quê tantas palavras para definir a mesma coisa?

O Grande Ninguém prefere apenas uma: idiota.

Com soluções na ponta de suas línguas hesitantes, mas falando com tantas certezas. Todos eles têm verdades prontas e  muitas vezes, algum dinheiro no bolso ("sou esperto, me dei bem!").

Aí toda a catilinária estúpida tem que ser ouvida contra a exploração do idiota pelo idiota.

São tão sábios, mas ninguém viu a cicuta ao lado, e o arrazoado de sua própria condenação.

Mas quem os ama não é ninguém, e não os quer admoestar.

Cinco maços de cigarro vazios, e nenhuma palavra de condenação.

Covardia preservar idiotas, egoísmo preservar a si mesmo.

E os analfabetos anunciam: "curso de alfabetização".

Analfabetos públicos.

O Grande Ninguém procurou conhecimento e vos encontrou.