23.11.16

UM DIABO VELHO SE ARRUMA PARA VER A MORTE DE SÓCRATES

O pastor de ovelhas Demétrios estava cansado. Parecia um diabo velho. Passou ao lado da porta de vidro e  viu sua imagem refletida. "Um diabo velho", pensou. "Nada mudou". Cabe observar aqui que diabo velho talvez remonte à mitologia do dáimon, grega,  um semideus cansado e cheio de vícios, que existia muito antes do advento do cristianismo. Certamente nessa época os judeus estavam lá, comprando e vendendo.

Atenas é uma cidade cheia de fiósofos e sofistas, homens respeitados que não passam de mendigos  falantes, parasitas da atenção incapazes de acertar um prego à porta ou carregar uma carroça com feno ou recolher um balde d'água para abastecer o estábulo. A esses chamam intelectuais ou políticos. São mendigos importantes, recebidos com pompa em casa do efeminado Alcebíades, vivendo às custas da distração do homem comum, que de tantos afazeres não tem tempo para pensar, então paga com a lei Rouanet para que pensem os sofistas, os Aristófanes, os Sófocles e, principalmente os Eurípedes e os Josés Celsos.

Mas ele finalmente foi convidado para um evento social. O suicídio de Sócrates está marcado para amanhã. Muito se pensou que o velhote fugiria, até as autoridades tentaram esta solução extra-legal, facilitando sua fuga, implorando mesmo que ele fugisse, mas o homem se manteve irredutível. Ele queria sair da vida para entrar na história.

Então o pastor de ovelhas Demétrios apertou sua gravata e beijou a imagem do Sileno: "Hoje vou me divertir".

Mandou a mulher recolher as crianças, trancar a porta por dentro e macetar as azeitonas, que ele iria voltar para a janta.

Que programa, o suicídio de um filósofo! Prometeu à patroa que iria tirar uma selfie.


21.11.16

DA UNIVERSALIDADE DAS OPINIÕES PARTICULARES

Antes de deitar-me, quando eu era criança, eu fazia minha oração.
Mas agora estou tendo alguma dificuldade.
Deus me ouvirá se eu orar, mas há alguns problemas burocráticos, antes de eu começar.
Dependendo da minha denominação auto-intitulada.
Parece que o pai-nosso tem diferentes efeitos, conforme o regulamento de cada igreja.
Católico vem do grego e significa "Universal", mas não é a 'Universal do Reino de Deus'.
Tampouco João Batista frequentava a Igreja Batista.
Cujos métodos são semelhantes aos da Metodista.
Métodos e liturgias que a todas respeito.
Nesta Bizâncio tão cobiçada pelos Mouros, que a tomarão.
Parece-me um rebanho de muitos pastores.

13.11.16

A CURA



Se fechei os olhos um instante
E essa voz maldita me tomou,
Essa voz de timbre lancinante
De mal ou de loucura ou de dor.

Essa voz de acorde dissonante
Me pôs a procurar por um doutor,
Mas o doutor, sem cura e sem chance
O jogo de uma alma não jogou.

De alma não entende, ou sacrifício
Mas pílulas, remédios e poções.
De morte e não de vida o seu ofício.

Do cérebro, insalubres convulsões,
Do corpo, chagas decadência e vício.
Fraqueza, tão humana das paixões.

A chuva que lá fora cai constante
Das luzes de Apolo me privou.
Na culpa do pecado delirante
Invoco a presença do Senhor.

Não há como uma alma se levante,
Não há, sem a presença desse amor,
Sem carregar a cruz e ao céu distante
Rogar perdão dos males que provou.

Se a luz deste perdão é tão difícil,
Pelo caminho amplo vão milhões
De almas com brilhantes artifícios.

Se a verdade não acho em poções,
Levanto os meus olhos para Cristo,
Suplico a sua cura em orações.

27.10.16

NASCI PRA ALGO


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Eu nasci para dar milho aos frangos e às galinhas. Para recolher os ovos e consertar a cerca. Todos os dias vejo pessoas dizendo que gostariam de viver no mato. Mentem.
Eu nasci para ler um livro à luz de velas. Para escrever a lápis. Para arar a terra e acender o fogo de lenha. Todos os dias vejo pessoas dizendo que gostariam de viver no mato. Mentem.
Eu nasci para ver os cachorros a proteger a casa. Morrerem de picada de cobra. Eu nasci para matar a cobra e beber a água do regato.
Eu nasci para pescar e mascar fumo. Para rezar Pai Nosso e Nossa Senhora. Para consertar uma caminhonete velha que tenho há vinte anos.
Eu nasci para trocar uma galinha por um punhado de café.
Eu nasci para ver o milho crescer.
Eu nasci para a terra e para a água. Para crer em Deus e pedir bênção. Para envelhecer com a pele enrugada de sol.
Quem sabe assim, ao fim do dia, pudesse acender um lampião e ler um livro sentado em uma cadeira que eu mesmo fiz, sob a luz de um lampião cuja resina troquei por um pouco de fumo que eu mesmo plantei, e acender um cachimbo para ler um livro em paz.

20.10.16

O MORDOMO DE SI DURANTE O CHÁ DAS CINCO




- Quer café, senhor?
- Sim, obrigado.
Assim o homem se oferecia a si mesmo o café, e ele mesmo aceitava.
- Ainda temos café.
- Graças a Deus.
Assim o homem falava sozinho nesse diálogo.
- Sabe você, estou tomando um novo remédio.
- Mas falar isso para mim é tautologia...não me impressiono. Estou tomando esse remédio também.
-Mais açúcar?
- Adoçante, obrigado.
- Está chorando?
- Não, é apenas terçol.
...

- Quais as novas?
-Sabe, andam dizendo que estou doente, mas é apenas fastio, falta de significado.
- Também anda bebendo demais...
- Sim, mas não todos os dias.
...

- Gosto muito de poesia...
- Acho uma merda. Coisa de desocupados.
- Você está doente.
- Pode ser. Mas você não é médico. E nem um médico com seu pedaço de papel pode dizer sobre doenças que não vê. Talvez seja apenas o declínio natural da vida.

...

- Por que não pede ajuda?
- Porque não preciso.
- Mas você me parece doente...
- Você também. São esses remédios que anda tomando.
- O remédio é bom.
- Ótimo. Você não faltava ao trabalho antes deles.
- Tiram a ansiedade,
- Prefiro o pai-nosso.

...

- Disseram que você é muito grosseiro.
- Sou mesmo.
- Você poderia ser mais suave.
- Você poderia não encher o saco.

...

- Disseram que você é escritor...
- Não sou.
- Eu li o que você escreveu. É bom.
- Grande coisa. Eu trabalho na fábrica de tijolos. Escritor é profissão. Eu nunca recebi um centavo por isso. Então não sou escritor.
- Mas você escreve bem.
- Que bom que gosta. Se precisar de tijolos, compre comigo.

...

- Você está gravemente enfermo.
- E você está gravemente idiota.
- Não precisa ofender.
- Você começou.

...

- Bom, está na hora de ir.
- Leve o seu Chico Buarque.
- Mas eu trouxe pra você ouvir.
- Não gosto. Aliás, não gosto de você.

...

- Tenha um bom dia, estou indo. Precisando me fale.
- Preciso que você vá embora.
- Você está doente. Deve ver um médico.
- Você é medico?
- Não.
- Então vá embora, não encha o saco e feche a porta. Da próxima vez que vier, faça o favor de avisar.

18.10.16

ISTO NÃO É POESIA


Você foi injusto para comigo. Eu tergiversei.
Escrevi mal para que mal lido fosse.
Então me cansei de você e fui à porta do Playcenter
Mas o Playcenter não existia mais.
E eu com o livro do Roger Caillois à mão.
Ou seja, tudo deu errado.
Você achou que eu escrevia mal e repetia palavras
Mas você nada faz.
Não escreve.
Não fala.
Não repete.
Não faz a menor idéia de onde está.
Não tem opinião sobre a ortografia antiga com relação à nova.
E ainda diz que esta poesia é ruim.
Mas isto não é poesia.

O troco em balas





Paulo Leminski é poeta.
Paulo Freire educador.
Professor se acha profeta
E do mundo educador
Dá preguiça do soneto
Do soneto dá-me dor
Vão chupar meu esqueleto
E peguem o troco em balas.

29.9.16

JUDEU POLONÊS


Às tantas fora expulso. Nem a gerência mais o tolerava.
Eis o seu defeito: incômodo, não pela bravata, pela verdade.
Mas enquanto argumentava, os outros se levantavam em armas.
Manso como era, irritava e fazia levantar os 'bravos'.
A verdade nunca importou, importou a força,
Mas para ele não importava a força, importava a verdade, e por ela morreria.
Cristo era judeu.
E ele polonês.

8.9.16

Fernando Pessoa, psicografia.


Talvez Fernando Pessoa se recolhesse ao boteco da esquina, renunciando à pena, socializando com o Esteves, se ele visse quanta gente tem tanto para dizer. A placa da tabacaria realmente está caindo e os idiotas dirigem a nau sem rumo. "E aí, Fernandinho?!", perguntariam. "Não tenho nada para falar", responderia, bebendo aquele vinho amargo e barato do Porto, em um gole.

Independência ou sem sorte


Espere morrer, bajulado!
Espere para ser nada.
Com o lenço que compraste para celebrar as glórias assoarão os narizes,
Lutador do nada!
Olhe-te no espelho invertido, português ao contrário!
Porque um povo sob uma cruz foi um povo e hoje todo o mundo é brasileiro.
Queres folgar, folgado?
Folgue.
Folgue nesta vida e adivinhe o resto.
Que bruto tu  já te tornaste
E  a isso chamas arte.

25.8.16

A MORTE DO AMIGO NÃO FOI O AMIGO NEM FOI MORTE, MAS EU GOSTO DELE


Sim, ele foi traído, e quem não foi? Ora, é consabido que a verdade ele procurou, e a verdade é o caminho mais estreito e não é pavimentado e é cheio de carrapatos que exigem uma parada para que sejam arrancados à unha, vez que até os instrumentos de arrancar carrapatos nos tiram e nos tiram até os carrapatos.

Ora, amigo, sequer amigo você é, mas cá conosco, somos amigos, e você está no Canadá. Tiram-te o ar colocando o dedo na traqueotomia e você entra em pânico, como o afogado que balança os braços de forma anárquica ao invés de dar um potente soco de direita na têmpora do maldito.

Sim, eu me afogo nos vapores da fumaça, e vou parar no Mandaqui, que facilmente renderia um soneto rimado no Juquiri em que eu receberia uma carta enviada por mim mesmo que jamais seria aberta, por quê? Porque ali talvez habitem meus sonhos alucinados.

Mas meus sonhos são apenas sonhos meus, e deles desvencilhado talvez me sobre mais tempo para a verdade, e eu gostei do que você fez com o filósofo, e gostei do filósofo, e gostei da dialética e da esposa e filhos e de estar acordado para dormir certificando-me de que estivessem cobertos.

Somos belos, embora nem sempre estejamos bonitos na foto.

O importante é o que importa. Enquanto escrevo, o louco grita na rua. Já estive lá.

(IMAGEM: DANIEL ARAGÃO)


13.8.16

CONFIANDO EM SI




Não confie demais em si.
Esqueceu o dó-ré-mi?
Não confie nos seguidores, confie nas dores.
Sem conclusões, oclusões nas artérias
São mais reais.
Animais.
Quando as palavras não fazem mais sentido converso com o cachorro e o gato.
E leio Paulo Leminski
E estudo Paulo Freire,
Freire me lembra frieira, não freira,
E coça,
Não faça troça.
Ironia
Mama mia
Funiculì, funiculà
Funiculì, funiculà
'Ncoppa jammo ja'
Funiculí funiculá
Giuseppe Peppinno! O bonde está chegando!
O bonde ainda tem sentido,
Mas não existem mais
O sentido, a rima e o bonde.

2.8.16

GENTE NORMAL

O apito do guarda noturno lembra o uivar do lobo. Olhei para o lado esperando achar peiote. Apenas a luz havia sido extinta, no momento. As televisões e as internets se calaram. Então, com o silêncio dos aparelhos eletrônicos, pude ouvir as preces ao governo, vindas de todo o bairro, para que restabelecesse a energia. As preces vinham desde a novela interrompida até a máquina de hemodiálise desligada.

 Eu quis ser Aliocha, mas nada neste mundo permitia. Fogos de artifício começaram a estourar em homenagem a algum time de futebol. Esses torcedores que consigam alguém para enfiar essas bandeiras de time de cem metros dentro das suas gargantas, arrastando o que sobrar em seu féretro.

 Com o barulho dos fogos, gente muito sensível começou a se preocupar com os coitadinhos dos cachorrinhos, e eu me coloquei em posição fetal e passei a chupar o dedo.

 Levaram-me ao hospital, onde me aplicaram pesadas injeções de narcóticos até que eu assumisse ser um cabra macho torcedor do corinthians e amante dos bichinhos, como toda a gente normal.

 Certamente toda essa gente é muito racional.


 Poderia dizer que são os jovens, mas os jovens acham os zumbis e os vampiros menos bizarros.

29.7.16

A CHALEIRA


A água começou a ferver.

"Noventa e cinco anos",  pensou, "e, qual! Ainda quero me enfeitar com laços e fitas!". Acendeu o cigarro de palha que o neto lhe havia dado e tragou, sem tossir. A chaleira fervia na boca da lenha e ela andou com os pés inchados e aquele chinelo de dedo, lentamente, em direção ao cinzeiro. A cinza não esperou e deixou-se cair ao chão.

- Merda!

O filho havia prometido vir para o café, tinha um filho, outros dois morreram, como o marido. Voltou-se para o forno, e retirou o bolo. Era forte, mas a forma escapou-lhe das mãos, espatifando-se.

Sentou-se em seu banquinho preferido, igual ao do Raul Gil. Lembrou-se do marido a picar fumo.

A água do café fervia, mas ela sentia algo diferente. Olhou para a chaleira preta, e considerou bem há quantos anos possuía aquela chaleira que serviu a tantos amados que vira partir.

"Chegou a minha hora", pensou, e morreu apenas pendendo a cabeça para um lado.


25.7.16

SPAM

O ser dormente diz: "acorde!" Eu acho de um disparate, quase lhe dou um tapa. - Spam! - Eu grito, mas ele me informa que é uma velhinha de noventa e nove anos que usa contraceptivos. Tenho que ser mais respeitoso.

Homens estranhos começam a sair do meu banheiro, dizendo que a casa é comunitária, mas apenas eu pago o aluguel. Fico nervoso e começo a retirá-los aos tapas, mas eles são mais fortes do que eu. Ameaço com polícia, mas um deles vem e se identifica como sargento.

Vejo algo escrito "Venezuela" ou "Cuba" ou "Obama" e alguém grita "Allah hu akba".

Acordo suado. É apenas febre.  O vírus pisca na tela e a energia cai.


10.7.16

PARESTESIA



Sentado não estava bom. Em pé também não. "Não ganha a sua criação com o suor do rosto - ela ali está, à porta, esperando para ser despertada ao primeiro contato com a dura realidade. É o sofrimento que ele tem que cultivar, não a virtuosidade do maestro".

Essa efígie de Henry Miller o perseguia quando retirou o livro da prateleira e o devolveu, e depois o procurou de novo, mas ele não estava mais lá, por mágica, até que no outro dia ele descobriu que tinha largado o livro sobre a escrivaninha e não o devolvera à prateleira. Era "O Tempo dos Assassinos", mas ele definitivamente não era Rimbaud nem Henry Miller, nem Billy Corgan nem Silvio Santos, mas era ele, ele mesmo, por graça e circunstância.

E por quê raios deixou a boca do fogão ligada se não ligara a boca do fogão ou não se lembrava de havê-lo feito? Cheirou o gás e correu a apagá-la, as portas estavam abertas.

Queria muito fumar, mas ficou com medo.

Esperou trinta minutos e acendeu um cigarro.

A casa não explodiu. As pernas lhe coçavam.

4.7.16

Síncope



Ele preferia ter desmaiado. Mas foi obrigado a permanecer em vigília, em seu surto despejou toda a dor sobre as garrafas que insistiam em sua inércia abruptamente interrompida a golpes de desespero. Perdão, perdão. Por favor, ele não cometeu o pecado, ou cometeu? Não sabia.

Não era resiliente, não era manso, não era suave, era um bruto daqueles que despejam sobre si mesmos a cólera incontida. Mas palavras são só palavras e cacos de vidro, esses sim cortam como o silício que não expia, mas parece inútil, no entanto, por quê se corta se é inútil?

Perdão, perdão, ele só quer ser perdoado pelos pecados que cometeu e que vai cometer na lassidão de sua vigília. Ontem, hoje e amanhã o humanismo e a imanência não bastam, e por isso sofre, sem síncopes, até ser colhido pela síncope eterna. Assim, pede perdão, porque sabe que nasceu para ser derrotado, e depende da graça que o Sileno não conhecia.

10.6.16

EU JÁ APANHEI NA RUA, BÊBADO E DROGADO



Eu já apanhei na rua, bêbado e drogado. Levantei-me. Lançado ao chão, até os cachorros furiosos se compadeceram, aqueles cachorros de rua, que latiam violentamente, passaram a me lamber com aquelas línguas sujas.

Mas eu sempre venci as brigas. Eles bateram, eu caí. Levantei e disse que eram fracos. Bateram mais forte, na têmpora. Levantei de novo. Eles não sabiam bater. Então eu me levantei novamente. Desistiram de bater.

Com o nariz quebrado, sangrando até os olhos roxos, pus-me a saltar comemorando, como Rocky Balboa.

Rocky Balboa, Muhammad Ali e eu.

Três idiotas.


1.6.16

As CORES da PALAVRA

...Não, meu caro, acabei de consertar a latrina e, convenhamos, é um tanto desagradável até o momento em que todos os dejetos descem até a fossa. Convenhamos também que não sou tão jovem, e o ir e voltar com as ferramentas até a casinha sob chuva, com essa minha saúde, não pode fazer bem ao desenvolvimento do trabalho que, desta feita, ficou parado para me recuperar de tão insalubre tarefa. Não tenho escrito nada nas últimas semanas, premido por essa fisiologia nada poética da necessidade.

Estou lhe escrevendo esta carta sob um certo desalento que tomou conta de mim ante a solidão e um certo alheamento que têm me dominado, como um embrutecimento ou uma vulgarização do meu olhar, que jamais tive. Estou me perdendo das palavras, das imagens, imagine, é como se Van Gogh perdesse as cores...padeço de algum mal que, se não me fizer perder uma orelha, talvez faça perder algo maior com o ouro amarrado à cintura, trabalhando nessa latrina, como o nada fausto Rimbaud em suas peripécias africanas...

Não exijo que me entenda, uma vez que já não sou tão jovem, tanto para desistir como para continuar, posto então que me coloco em um impasse que me impede de decretar se é a saúde a causa da fadiga ou o cansaço senil do espírito que se aproxima, afetando as funções cognitivas e a própria memória das palavras, como a memória das cores afetaria um pintor acossado pela catarata.

Convém dizê-lo, amigo, que o ambiente circundante é rude; tampouco é estimulante, uma vez que, ao que me parece, as pobres almas todas têm que se preocupar cada qual com a sua própria latrina, que sem as latrinas teremos doenças demais, de modo que não podem ser culpadas de incompreensão - as pessoas e não as latrinas - veja, eu mesmo ando doente.

Destarte, é a presente para lhe dizer que convalesço. Não desisti, no entanto não posso trabalhar nos escritos, uma vez que tenho, para além da latrina, um trabalho na vila que me provê o sustento - há de ser muito aborrecido dever ao ferreiro e ao verdureiro -  uma vez que o sustento pela palavra tem sido impossível tão somente porque nada tem trazido de útil aos homens desta vila, que antes procuram ferros para as grevas, as panelas e os cavalos, o que tem trazido grande prosperidade aos ferreiros aliados d'El Rei.

Agradecido pelo açúcar que me enviaste, e pelos bons votos e leituras dos meus humildes trabalhos, feitos na calada da noite, faço votos de amizade, saúde e prosperidade.

Do sempre teu,

Jack.




22.5.16

SEMPRE RI



Era um homem do riso fácil. Sempre o chamaram filósofo. Da contradição arrancava a unidade. Da dúvida, a certeza . O homem era todo sorrisos. Provocá-lo achando que ele seria vencido era trazer à tona uma miríade de fábulas, lugares-comuns e frases de para-choques de caminhão. E sorrisos. Muitos sorrisos. E muitos o achavam sábio. Ao contrário do conselheiro Acácio, suas platitudes eram ditas de forma fácil, em um tom de voz afetado. Era considerado sábio, pois em terra de cegos quem tem olho não abaixa as calças.

Esse homem estava no rádio, na televisão, na internet e nas cátedras. Nada mais apropriado. Ele era um condutor de rebanhos, quer para o pasto ou para o abismo.

Entendo que rir é bom. Mas os idiotas são os que mais riem. De tais premissas, não sei se posso concluir que apenas os idiotas são felizes.

"Livre pensar é só pensar", dizia Millôr. E se a pobre inculta e bela ainda vigora, pensar não é falar.

Naquele dia, nosso sábio deparou-se com um homem muito enfezado. E deu vazão à sua cantilena sobre o riso, a alegria (entendam, gosto do riso) e  a conversa de botequim de fim de noite do homem que não bebe com os bêbados. Após seu panegírico sobre as salutares propriedades do riso, seu interlocutor despediu-se, dizendo:

- Assim nasceram as hienas.

E foi embora. Nosso sábio ficou lá, rindo.


14.5.16

DA MEDIOCRIDADE - POEMA

DA MINHA MEDIOCRIDADE
EU NÃO ME ORGULHO.
NÃO É COISA DE IDADE,
É NOVO E VELHO ENTULHO.

A VIDA E A NATUREZA
PARA ALGUNS É MERO ESBULHO.
PARA OUTROS É PUREZA,
PARA ALGUNS É MAIS BARULHO.

COMO SE O FRIO
CHEGASSE SÓ EM JULHO.
E A VERDADE
CHEGASSE EM UM MERGULHO
NA INSANIDADE,
EM UM EMBRULHO
DE PRESENTE.

RESISTENTE,
EU ME RENUNCIO;
ANTE À VERDADE RENITENTE
EU ME ESVAZIO.
-QUE DIZ?
NÃO OUÇO.
FAÇO OUVIDOS DE MERCADOR.

13.5.16

AQUELES CARAS ERAM VIOLENTOS




Aqueles caras eram violentos. Por algum motivo, não queriam me dar uma surra.
Mas deram. Eles nem queriam me dar uma surra, mas eu estava ali, punhos cerrados, pronto para apanhar.
Eles insistiam que não iriam me bater, mas eu não tergiversei, não retrocedi. Eu exigi apanhar.

Então, eles me bateram.

2.5.16

O GRANDE APRENDIZADO NO ENTENDIMENTO DO NADA.




O tom do professor era professoral.

Assim ele explicava a grande influência do nada no existente e como o nada forjou filosofias, partidos e slogans pelos quais uma fila de imbecis se sacrificou e matou milhões de inocentes.

- E Deus? - perguntou o aluno da última fila, de forma provocativa.

- Deus, respondeu o professor, Deus é um pouco mais antigo que o nada. Ele já existia.

Então, passou a tratar da eternidade.

Aí o tom do professor era confessional.

SEM DESPREZO, nada consta


"Eu pensei que seria poeta e escritor; fiz-me um batedor de carimbos".

Era a frase perfeita! Como queria comprar um caminhão apenas para pintá-la no pára-choque.

Mas ele não era um caminhoneiro. Era um batedor de carimbos.

Parou em frente ao espelho com a xícara de café na mão, olhou para o relógio. Lembrou do coelho da Alice Wonderland.

Poeta e escritor é assim como modelo e atriz.

Muito mais bem lhe fazia o carimbo, porque ali estava uma verdade em alto relevo: "NADA CONSTA".

20.4.16

SONHOU-SE UM PESADELO


Esquentou a pizza, mas não comeu.
Então tomou a caneta, mas nada escreveu.
Não era por niilismo.
Era apenas um daqueles momentos em que as coisas e as pessoas se agigantavam.

Tolstoi largou as riquezas, mas não virou santo, pois a ortodoxia não gosta de santos:
Tolstoi virou um capote.

E os italianos gostam de santos e de gangsters.

São católicos. Muito permissivos.

E como cabem infinitos momentos em um momento...

Eu lia, e parei de ler.

Foi olhar a pizza. Estava quase queimando.

Desligou o fogo.

A velocidade da escrita, como eras.

A velocidade da leitura, como fogo.

O lacrado, o acontecido ante o inopinado.

Eu posso estar rindo e ceando e sendo consumido por dento por platelmintos.

Eu posso enriquecer e comprar uma passagem e embarcar

No Titanic.

Primeiro mulheres e crianças mas as mulheres não querem nem as crianças.

Bravura, mas não se decifre,

Talvez nada signifique na boca de uma personagem.

30.3.16

A ALMA DO ARTISTA

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Que me interessa a alma do artista?
A alma da pedra, do andarilho, do sofista?
Alma é alma ou alma não é.
Que é alma? Que palavra explica o que é?
Sim, as palavras dizem,
Os mendigos pedem,
Os artistas fingem,
Escritor escreve,
O leão ruge
E a caverna é de Platão.
E o coração?
O coração bate ou está no espeto
Se for de frango.
As hienas comem,
Se for de leão.
Mas o homem não criou a alma,
Apenas deu-lhe um nome
A alma existe,
Até a dialética existe,
O que não existe é o materialismo dialético.

22.3.16

HISTÓRIA INFANTIL PARA ADULTOS



Adentrou, em um primeiro momento de forma tíbia; enfim empertigou-se, escolhendo uma carteira vaga. Todos olhavam para si, como se fosse o imponderável, mas não passava de um velho.

- O que vocês estão olhando, imbecis? - e a sala de aula transformou-se em um burburinho de risos infantilóides, como se aquelas pessoas de vinte e vinte e poucos anos não fossem adultas.

A professora entrou, com ares eruditos, e percorreu a sala com os olhos inseguros, e se incomodou com a presença dele:

- Bom, aprender não tem idade...sejam todos bem vindos - falou, com os olhos fixos no velho.

Este, imperturbável, manifestou-se:

- Professora, com todo o respeito, eu poderia acender um cigarr....

- Imagina seu...

- Jorge.

- Seu Jorge, sei que no seu tempo as pessoas fumavam em todos os lugares e...

- Tudo, bem, professora. Estou me retirando. Está vendo aquela janela ali e a fumaça entrando?

- Sim, estou.

- Aquilo é maconha. Vou até lá, me juntar com os maconheiros, mas para fumar meu cigarro. Quem sabe isso lá é aceito.

E o velho foi fumar seu cigarro com os maconheiros. Mas eles não quiseram saber e o expulsaram.

Então, o velho voltou para casa e largou a faculdade.

8.3.16

CONSERVANDO


eU PRECISAVA ESTAR LOUCO PARA FAZER AQUILO.

Que diferença faz, crescendo eu em meio a loucos?
Agora já não enxergo as vírgulas, a vista falha e sei que é idade,
A fumaça e a cidade.

Mas a verdade.
Ela me chama a atenção.
A verdade não está usando batom nem maquiagem.
Ela não é a mulher de Nietzsche, porque Nietzsche nunca teve mulher.

A verdade é frugal e está subindo no pé de manga
E se lambuza exibindo dentes brancos e diz envelheço e renovo.

A um homem do meu tempo sendo louco mais admira a mulher sendo Tétis e Atena.

Aquiles teve seu Pátroclo e eu não quis o nada e não quis o Pátroclo.

Assim, mandei Epicuro aos infernos.

E chorei.

4.3.16

Minha Pergunta

Minha  pergunta não tem resposta.
O quê você vai fazer amanhã?
Como vai me proteger?
Vai me amar daqui vinte anos?
Promete? Promete, como?
Não prometa.
Nós estamos nos empenhando.

Da irrelevância



Eu tanto pedi a Deus que ele me deu. Deus é fiel. Nenhum urso se achou importante e eu nunca estive na boca do urso como os ursos na boca das espingardas.

A minha irrelevância não me exalta, torna-me ainda mais irrelevante.

Entre os vivos e mortos, entre a insignificância diante da eternidade: eu, os vivos e os mortos.

Obrigado, vivos e mortos. Ursos e homens.

Já me fizeram um obséquio.

6.1.16

DEIXEM O HOMEM EM SILÊNCIO


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Deixem o homem em silêncio.
Vocês já disseram tudo.
Ele apenas replica o sentido que vê coisas nas palavras.

Em seu umbigo ele vê sujeira, e limpa.
Deixem o homem em silêncio.
Jamais deixem seus umbigos sujos.

Com um cotonete embebido em álcool
Ele limpa o umbigo.
Ali ele não vê nada.
Nada além de um umbigo.

Ele olha para outro lado.
Seu umbigo está limpo.
Com um cotonete ele limpou adjetivos e eufemismos,
Com uma fúria que machucou seu próprio umbigo.

Ele apenas pede:
Façam algum sentido.