27.3.14
ANTON
"Numa bela manhã, estava sendo enterrado o assessor colegial Kirill Ivânovitch Vavilônov. Ele havia morrido de duas doenças muito difundidas em nosso país: esposa raivosa e alcoolismo. Quando o cortejo fúnebre se dirigia da igreja para o cemitério, um dos colegas do morto, um certo Paplávski, tomou um coche de aluguel e foi às pressas à casa do seu amigo Grigóri Petróvitch Zapóikin, sujeito jovem, mas já bastante popular. Como é do conhecimento de muitos leitores, Zapóikin possui o raro talento de pronunciar discursos de improviso em casamentos, jubileus e enterros. Ele pode discursar em qualquer situação: meio dormindo, em jejum, caindo de bêbado, ardendo em febre. Seu discurso flui suavemente, sem percalços, de forma abundante, como a água que sai do cano. No seu vocabulário de oratória há mais palavras de consternação do que o número de baratas em qualquer taverna. Ele sempre fala durante muito tempo, de maneira eloquente, de modo que, às vezes, especialmente em casamentos de comerciantes, para fazer pará-lo é necessário recorrer à polícia".
Anton Tchékhov, Um Negócio Fracassado, L&PM pocket, p.173.
ABSINTO E GRANADINE IX: A RAIVA E A ESCOVA
-->
A
bílis lhe atingia o estômago. Sua raiva era difusa. Sem armas, sem
tiros, sem morte. Não entendia direito sobre o que falava, entre os
seus, ignorantes pretensiosos, estava confortável, era um deles,
inobstante a honestidade intelectual. Já fora um homem com uma
máquina de escrever, que diziam poder ser uma arma, agora era um
homem com um computador, muito mais poderoso.
Só tinha um
problema. Nunca escrevera nada. Procurou ser apenas obscuro e
elíptico, sem jamais revelar sequer nas entrelinhas as verdades
sobre o ser humano, sobre si mesmo.
Tinha raiva? Era
ele Sócrates, ou Cristo?
Parecia que ele
estava certo. Enquanto isso, alguém despreocupado procura pela
escova.
A essa outra
pessoa, a que procurava a escova, parecia que sua pequena alegria
impedia a alegria do outro que achava sua alegria muito mais bem
fundamentada, ainda que baseada em nada. Todos já ouviram isso
antes, e os filólogos traduziram com impertinência os textos mais
antigos acerca desse assunto, não sem temperá-los com suas próprias
idiossincrasias, trocando enganos por outros enganos.
Todos perderam
essa discussão, e morreram uns com mais, outros com menos raiva.
26.3.14
JOGANDO CARTAS
O Grande Ninguém joga cartas com Deus. Deus ganha todas. Isso enche-me de orgulho. O coitado evoca o acaso. Deus ri. Ao invés de recolher as fichas, distribui-as novamente.
O LUGAR QUE O GRANDE NINGUÉM NUNCA VISITOU, MAS VISITARÁ (?)
Há um lugar onde nunca estivemos. Esse lugar fica no tempo.
Onde não havia nascido, e após ter morrido.
Nos encontramos lá.
Onde não havia nascido, e após ter morrido.
Nos encontramos lá.
25.3.14
O PORTA-CAFÉ E O SILÊNCIO DO GRANDE NADA
O silêncio era tanto e ele pensava nas palavras dos homens que um dia imaginou admirar. Deus estava sentado à sua frente, observando-o, apenas, e ele em silêncio, preocupado em não blasfemar. Este era um homem íntegro, reto, temente a Deus, mas um pouco incapaz em certos momentos de se desviar do mal, antes do fatal abalroamento.
E ele sabia desconfiar daquele que rodava, observando, e desejava dos filhos da sua vida que nenhum pecasse por observá-lo pecando. Sua vida era arte; a vida não imita a arte, a vida não poderia ser imitada, por isso jamais a vida poderia imitar o que quer que fosse com perfeição.
A arte, imitação da vida: apenas símbolos. Mas a arte como vida: ah, isso não é só metalinguagem.
Então ele se sentiu um pouco perplexo e acabrunhado com seus próprios pensamentos e com a sua precariedade. Deus encarou-o, condescendente.
O porta-coador de café estava na pia desde manhã, e só agora deslizou sobre seu próprio eixo, emitindo o único som que quebrou o silêncio.
No silêncio profundo, o porta-café pareceu-lhe um dos seres mais vivos e cheios de espírito. Deus, a personagem principal, olhava-o com carinho. Em outras ocasiões, Deus já tinha bebido com ele até cair tombos homéricos de forma propositada, mas se levantava sempre (Deus nunca morre, parece às vezes que se machuca) e, ao final, era sempre Deus que o levava para casa e o colocava na cama.
Ele sabia: não dá para ser mais realista que a realidade. Depois de tudo o mais, o humano ainda era feito de palavras, e Deus estava em um entendimento alcançado apenas de forma muito limitada. Mas Deus estava lá, sentado diante dele, como tantas vezes estivera. E Deus queria que ele conhecesse.
E foi Deus que interrompeu o silêncio para murmurar uma frase:
Entre eu e você, apenas o Chico Buarque tem medo da construção?
E juntos, abriram uma cerveja.
E ele sabia desconfiar daquele que rodava, observando, e desejava dos filhos da sua vida que nenhum pecasse por observá-lo pecando. Sua vida era arte; a vida não imita a arte, a vida não poderia ser imitada, por isso jamais a vida poderia imitar o que quer que fosse com perfeição.
A arte, imitação da vida: apenas símbolos. Mas a arte como vida: ah, isso não é só metalinguagem.
Então ele se sentiu um pouco perplexo e acabrunhado com seus próprios pensamentos e com a sua precariedade. Deus encarou-o, condescendente.
O porta-coador de café estava na pia desde manhã, e só agora deslizou sobre seu próprio eixo, emitindo o único som que quebrou o silêncio.
No silêncio profundo, o porta-café pareceu-lhe um dos seres mais vivos e cheios de espírito. Deus, a personagem principal, olhava-o com carinho. Em outras ocasiões, Deus já tinha bebido com ele até cair tombos homéricos de forma propositada, mas se levantava sempre (Deus nunca morre, parece às vezes que se machuca) e, ao final, era sempre Deus que o levava para casa e o colocava na cama.
Ele sabia: não dá para ser mais realista que a realidade. Depois de tudo o mais, o humano ainda era feito de palavras, e Deus estava em um entendimento alcançado apenas de forma muito limitada. Mas Deus estava lá, sentado diante dele, como tantas vezes estivera. E Deus queria que ele conhecesse.
E foi Deus que interrompeu o silêncio para murmurar uma frase:
Entre eu e você, apenas o Chico Buarque tem medo da construção?
E juntos, abriram uma cerveja.
UM SÁBIO EXPLICA PORQUE OS POETAS MORREM
"Rimbaud sofreu sua grande crise aos dezoito anos, momento este da sua vida em que chegara à beira da loucura; daí em diante a sua vida é um deserto sem fim. Eu cheguei ao mesmo ponto na idade de trinta e seis para trinta e sete anos, idade em que Rimbaud morreu. Desse ponto em diante a minha vida começa a florescer. Rimbaud abandonou a literatura pela vida; eu fiz o contrário. Rimbaud fugiu das quimeras que criara; eu as abracei. Cansado da tolice e do desperdício de mera experiência de vida, parei e transformei minhas energias em criação. Mergulhei na literatura com o mesmo fervor e com o mesmo prazer com que mergulhara na vida. Em vez de perder a vida, ganhei vida; foi milagre após milagre, e cada infortúnio se transformava em coisa boa. Rimbaud, embora mergulhado num reino de climas e paixões inacreditáveis, num mundo de fantasia tão estranho e maravilhoso quando os seus poemas, tornou-se cada vez mais amargo, taciturno, vazio e tristonho.
Rimbaud restituiu literatura à vida; eu tentei restituir vida à literatura."
Henry Miller, O Tempo dos Assassinos, Gráfica Record Editora, 1968, p. 34.
24.3.14
A SABEDORIA DE WILL
"A própria virtude não escapa aos golpes da calúnia. O verme ataca, constantemente, os tenros filhos da primavera, quando ainda não abriram os botões e na aurora e no fresco orvalho da juventude é quando mais ameaçam os hábitos contagiosos(...)A juventude se rebela contra si mesma, quando ninguém se aproxima para hostilizá-la"
William Shakespeare, Hamlet. Fala de Laerte a Ofélia.
23.3.14
FRANZ E AS CRIANÇAS
"Uma certa infantilidade perene, invencível, caracteriza o nosso povo; em franca contradição ao de que melhor temos, ao nosso juízo prático infalível, às vezes somos acometidos de uma estupidez total e absoluta, a bem dizer, a mesma estupidez inconsequente, extravagante, orgulhosa e leviana que se observa nas crianças, tudo isso em nome de uma pequena diversão". (Franz Kafka, "Josefine, a cantora, ou o povo dos ratos", in Um artista da fome & outras histórias, L&PM Pocket, p.63).
22.3.14
ABSINTO E GRANADINE VIII: INTER URINA ET FAECES NASCIMUR
Saiu
do consultório do médico, perplexo, teria entendido direito o que o
doutor lhe havia recomendado? As cólicas intestinais o abalavam
profundamente, a ponto de tornarem embotados seus mais triviais
pensamentos, impedindo-lhe o curso normal do raciocínio. Tentou
tranqüilizar-se, mas, bolas, como o fazer? Já tinha produzido seus
piores textos, já havia formulado suas pérolas menos preciosas nos
papos com os amigos. No trabalho, já havia expedido seus piores
ofícios, assinados por superiores pouco diligentes grassando, não
raro, inúmeros inconvenientes. Com as namoradas, já produzira as
piores situações, principalmente quando bebia demais, e vez ou
outra tivera suas piores crises de ciúmes. Já fumara os piores
charutos e bebera dos piores vinhos, comera nos piores restaurantes,
dormira nos piores hotéis, andara nas piores companhias, acordara
com as prostitutas mais feias de cinqüenta anos que fumavam crack
pela manhã, enfim, por mais que procurasse suas qualidades nas
piores e mais incultas produções de toda a sua vida, aquela que o
doutor lhe apontara era uma nova conquista no campo das piores coisas
que já fizera.
Parou no ponto de
ônibus e sentiu uma leve tontura, que o forçou a se apoiar no
poste. À sua frente, o banco mercantil, com um cartaz oferecendo as
melhores condições de crédito que, sabia ele, eram as piores.
Sentou-se no banquinho do “Melhor Pastel de Feira” que na verdade
era uma porcaria, e pediu um caldo de cana, muito provavelmente
contagiado por coliformes fecais ou talvez até o Mal de Chagas.
Imediatamente ao primeiro gole, uma forte pontada no ventre o fez
afastar violentamente o copo, que se espatifou no chão. Desculpou-se
com a coreana de avental muito sujo que o xingou em sua língua, algo
que o ofendeu profundamente, escapando-lhe um espontâneo
“vá-a-merda”.
Voltou ao ponto
de ônibus, nova tontura afligindo. Uma moça, muito bonita por
sinal, perguntou-lhe se se sentia bem, se precisava de algo, ele
negou, não, tudo bem, e em seguida desfaleceu, indo pateticamente ao
chão.
Abriu os olhos
com a luz do hospital ofuscando-lhe a vista, uma enfermeira igual à
Wilza Carla tentando acalma-lo, ele abriu um sorriso quando se
lembrou das palavras do médico anunciando seu mais novo recorde:
“Jamais, em toda a minha experiência clínica, eu vi um cocô pior
que esse!”
20.3.14
MIKHAILOVITCH
"Eu não era capaz de ficar mais de três meses seguidos devaneando e começava então a sentir uma necessidade incontrolável de mergulhar na sociedade, o que, para mim, significava visitar o meu chefe de Seção, Anton Anônytch Sétotchkin. Foi a única pessoa conhecida com quem mantive uma relação constante durante toda a vida, fato que, agora, até eu mesmo considero surpreendente".
Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski, em um tweet do séc XIX, Em "Notas do Subsolo", 2008, L&PM Editores.
VINCENT VAN GOGH
"(...)eu decididamente não sou um paisagista; se faço paisagens, sempre haverá nelas vestígios de figuras".
OLÍMPICOS
Sendo os olímpicos antropomorfos, compartilham dos vícios da alma, mas bebem licor de ambrosia.
18.3.14
ABSINTO E GRANADINE VII: HOJE
Hoje
é o dia em que eu não deveria ter ido trabalhar. Hoje é um dia em
que um homem respeitável não sai de casa, mas se sair, é para
pedir perdão por seu silêncio. Hoje, esse tipo de homem está
tentando, como todos os homens e mulheres. Seu silêncio quer
esconder a confusão, como todos os silêncios.
Hoje, este homem
deve pedir perdão pela abominável idéia de sair de casa. Hoje,
este homem deve pedir perdão por envolver o mundo em sua
idiossincrática cadeia de idéias disparatadas sobre a vida.
Hoje, este
respeitável homem limpa sua casa, suas roupas e seu corpo, porque,
por pior que ele seja, não pode viver na imundície.
Hoje é o dia, o
dia em que o homem foi, fez o que não quis, por um punhado de
dólares.
Por um pequeno
punhado de dinheiro, o qual gastou todo, com asco de si mesmo, em um
bar; após garantir sua pequena monta, este homem passou algumas
horas com os piores tipos de perdedores humanos e com eles gastou
tudo; no absurdo de sua vida pôde ver, não sem certo orgulho, vidas
mais absurdas que a sua.
No centro da
grande cidade chamada Lagarta bebeu até perder sua lucidez, sua
memória e, por pouco, qualquer resquício de dignidade. Um drinque
no inferno, os demônios esvoaçantes demonstravam a este pequeno
fauno o porquê de não usarem roupas brancas, que exibem manchas da
sujeira fácil.
A este pequeno
ser mitológico foi negado, felizmente, qualquer prazer com os
demônios, que recusaram seu convite para irem até a minúscula casa
que habita, onde ainda há Deus, embora Deus esteja velho e
debilitado, e sua voz muitas vezes não seja ouvida.
Nessas, como em
outras eventualidades, a este pequeno homem ainda é permitida a
companhia dos anjos que, em vão, clamam encarecidamente: não saia
de casa.
17.3.14
ABSINTO E GRANADINE VI: CRIANÇAS NA JANELA
Cats
in the cradle. Crises de ansiedade. São dias difíceis. Observo pela
janela a superficialidade. Lá está a creche, que dá de frente para
meu novo quarto alugado. Não mais hotéis baratos. Hora do recreio,
o desfile anárquico das crianças e seus sonhos estertorados, cuja
maioria jamais se realizará.
Preso à cadeira,
reflito a precariedade pueril. Nunca resolvi ser artista,
simplesmente não tive escolha. Ao diabo com o livre arbítrio! Como
homem de ação, sou menos que medíocre. Como artista, eu me
respeito, mas muito pouco. Uma discreta náusea me ataca. É só o
estômago. Não preciso de ninguém para me mostrar como sou pequeno,
tal e qual os sonhos de eternidade do homem, físicos e metafísicos.
Eu cedo à
ansiedade. Não vou trabalhar. No serviço, especulações. Desde as
dez da manhã estava pronto, banho tomado, roupa vestida, perfumado,
dentes escovados, sentado na cadeira. Às duas da tarde, desisti.
Melhor não ter ido. Especular-se-ia mais sobre meu estado. Já estou
acostumado. Tentei muitas pílulas. Quetiapina. Diazepam, na veia.
Cedi a cessão nada nobre, mas e daí?
Não fossem os
cigarros, nem sairia de casa. Suo perante a porta da rua, suo frio
perante a porta que me leva ao mundo. A abstinência me inocula
coragem, atravesso a rua correndo, do outro lado está o bar. Pego
dois maços, pago, e retorno no mesmo passo em que fui, sento-me, na
cadeira, para não mais levantar, ao menos hoje. Olho pela janela. As
crianças já se foram, como inúmeras gerações delas. Não existe
livre arbítrio. Implicaria em poder decidir não morrer.
O pátio está
vazio. Fecho a cortina. A única infância, aqui e agora, é a das
minhas lembranças. Adoro-te, morte, desde que sejas minha. Ao menos
engraxei os sapatos.
15.3.14
TENTATIVA FILOSÓFICA
Ao que me parece, o verdadeiro mestre é aquele que conduz ao caminho do conhecimento, como o pai guiando o filho em uma bicicleta sem rodinhas.
Conhecer é saber distinguir realidades ideais, também no sentido platônico, em meio ao turbilhão do caos. Isso não é fácil como parece fazer crer a afirmação. Pelo contrário.
A sabedoria é a atitude correta da mente perante o conhecimento. A ideia do infinito e do transcendente se ocupa de limitar a sua abrangência.
Pensar é a tarefa do espírito. Os grandes espíritos são como milagres.
Como sempre, tudo é espanto para mim.
Conhecer é saber distinguir realidades ideais, também no sentido platônico, em meio ao turbilhão do caos. Isso não é fácil como parece fazer crer a afirmação. Pelo contrário.
A sabedoria é a atitude correta da mente perante o conhecimento. A ideia do infinito e do transcendente se ocupa de limitar a sua abrangência.
Pensar é a tarefa do espírito. Os grandes espíritos são como milagres.
Como sempre, tudo é espanto para mim.
GOETHE
"Onde eu me sentia liberto e aliviado, porque havia transformado
a realidade em poesia, meus amigos se enganaram, acreditando que se
devia transformar a poesia em realidade."(Goethe).
Abram a janela do quarto, para que entre mais luz.
Abram a janela do quarto, para que entre mais luz.
Goethe encontra-se com Napoleão em Erfurt
Goethe encontra-se com
Napoleão em Erfurt
Gravura
ABSINTO E GRANADINE V: A MORTE DO CIGARRO, QUE A VERDADE NEM NASCEU
-->
Outro
dia (que por acaso é este), peguei um cigarro para acender. É uma
relação de amor e ódio, vida e morte. MORTE é o que está escrito
no maço. “MORTE” está em tipo branco sobre fundo preto, e
abaixo, a foto do presunto humano. Descrita rapidamente, é uma
imagem atraente como aquela que um homem usaria mentalmente para não
ejacular rápido demais. Não tem rosto, vai do pescoço ao umbigo.
Eu que estou com uma tosse danada, ponho-me a pensar. Agora que o
dito cujus está
morto, o que sente? Ele está sofrendo ou gozando as delícias do
paraíso? Está incomodado em ser fotografado com aquele buraco da
traqueotomia e os indelicados cortes do bisturi da necropsia? Ou,
sente-se como um torresmo, que não sendo mais porco não pode gritar
e se deixa, feliz e suculento, comer por um pingaiada qualquer em
estado terminal, num um botequim da Sé, ou ainda, jogado ao lixo, se
permite ser comido gostosamente pelos vermes pululantes, dando assim
sua final contribuição para a cadeia universal da biosfera?
Incomodam-me os
paladinos da correição política de hoje, esses covardes que não
podem ouvir falar de morte: amam a vida demais, dizem. Saberão eles
o que é a vida? E o amor? A verdade? Oh, eles sabem de tudo.
Nietzsche peida no caixão, e Heráclito, a tiracolo.
Sofro com o meu
vício, o cigarro, sofro alegremente, pois minha tosse amenizou, e
quem sabe eu vivo um pouco mais, ou deixo de sobreviver vegetando,
como diz meu pai, que me queria juiz de direito (de direita?): talvez
aí eu conseguisse ser um perfeito capote de Tolstoi. Acendo mais um
cigarro, tusso e cuspo um naco sólido misturado com sangue. Estou
lúcido, canibais da vaidade, peguem-me morto! Morto, serei mais
perigoso, morto vou valer mais, e sobreviverei a vocês. A morte
nunca morre! Que o diga Vincent, o pintor!
O cigarro acaba.
Futuco o maço, na esperança de mais um. Não há. Acabou. Por hoje,
o cigarro morreu. Talvez amanhã eu acorde vivo.
13.3.14
NOVAS CRÔNICAS DO GRANDE NINGUÉM
Sim, era eu quem estava sentado sozinho naquela ponte de madeira, sobre a beira do córrego, em algum lugar do Mato Grosso.
Sim, era eu que estava tragando aquele fumo-de-caboclo, era eu mesmo, e você me viu de longe, sem que eu a visse.
Sim, era eu que tinha aquela tez de calma contemplativa, olhando para o nada, como só o Grande Nada, o Grande Ninguém, olhando para lugar nenhum.
Sim, era eu que não sabia ser mais humano, tão humano, não quase-humano, mas humano como o desespero que hoje me marca com rugas e com barbas brancas.
Sim, aquele era eu, e vinte e quatro anos se passaram.
Mas eu não sabia que você me olhava.
Oh, pobre espírito virginal era o meu!
Arrastado pelo turbilhão do caos, apegando-me então, como hoje ainda, a qualquer caco flutuante que me parecesse com a verdade. Mas eu conheço cegos que enxergam melhor do que eu.
Sim, e com a gramática imprudente da juventude, por vezes eu disse verdades que tomava como invenções minhas. Com a retórica que não sabia ser retórica, influenciei vidas. Creio, sim, que o Grande Nada também reza. É estúpido e bronco, e não foi fiel. Deve se confessar.
O Grande Ninguém sempre caminha para lugar nenhum. Eterno e transcendente, mas pequeno e patético.
E agora os jovens envelhecem e alguns velhos sempre querem defendê-los de si mesmos.
Creio que você me defendeu, sem que eu a tenha visto.
Eu não sabia que você me olhava.
Creio que você me olhava apenas por minha vontade de ser grande e entender que grande é nada. Creio que você percebeu que eu era um Hume que poderia ser salvo. Creio que você sorriu com meus modos pueris de raciocínio, talvez tenha se encantado com minha ingenuidade.
Talvez eu ainda seja ingenuamente naive.
Não sei se o fui, mas: amo-te.
Eu não sabia que você me olhava.
Na verdade, eu nem sei se você passou por lá naquele dia.
O Grande Ninguém se distrai demais.
Ele pensa que é metafísico.
Sim, era eu que estava tragando aquele fumo-de-caboclo, era eu mesmo, e você me viu de longe, sem que eu a visse.
Sim, era eu que tinha aquela tez de calma contemplativa, olhando para o nada, como só o Grande Nada, o Grande Ninguém, olhando para lugar nenhum.
Sim, era eu que não sabia ser mais humano, tão humano, não quase-humano, mas humano como o desespero que hoje me marca com rugas e com barbas brancas.
Sim, aquele era eu, e vinte e quatro anos se passaram.
Mas eu não sabia que você me olhava.
Oh, pobre espírito virginal era o meu!
Arrastado pelo turbilhão do caos, apegando-me então, como hoje ainda, a qualquer caco flutuante que me parecesse com a verdade. Mas eu conheço cegos que enxergam melhor do que eu.
Sim, e com a gramática imprudente da juventude, por vezes eu disse verdades que tomava como invenções minhas. Com a retórica que não sabia ser retórica, influenciei vidas. Creio, sim, que o Grande Nada também reza. É estúpido e bronco, e não foi fiel. Deve se confessar.
O Grande Ninguém sempre caminha para lugar nenhum. Eterno e transcendente, mas pequeno e patético.
E agora os jovens envelhecem e alguns velhos sempre querem defendê-los de si mesmos.
Creio que você me defendeu, sem que eu a tenha visto.
Eu não sabia que você me olhava.
Creio que você me olhava apenas por minha vontade de ser grande e entender que grande é nada. Creio que você percebeu que eu era um Hume que poderia ser salvo. Creio que você sorriu com meus modos pueris de raciocínio, talvez tenha se encantado com minha ingenuidade.
Talvez eu ainda seja ingenuamente naive.
Não sei se o fui, mas: amo-te.
Eu não sabia que você me olhava.
Na verdade, eu nem sei se você passou por lá naquele dia.
O Grande Ninguém se distrai demais.
Ele pensa que é metafísico.
11.3.14
TRECHO DA CARTA DE SANCHO PANÇA A D. QUIXOTE DE LA MANCHA - Homenagem aos 400 anos de Quixote
"A ocupação de meus negócios é tão grande, que não tenho lugar nem para coçar a cabeça, nem para cortar as unhas, de forma que as trago tão crescidas, que só Deus lhes pode dar remédio.
Digo isto, senhor meu da minha alma, para que Vossa Mercê não se espante de eu até agora não ter dado aviso se estou bem ou mal neste governo, em que tenho mais fome do que quando andávamos pelas selvas e despovoados.
Escreveu-me o duque meu senhor, no outro dia, dando-me aviso de que tinham entrado nesta ilha certos espias para me matar; e, até agora, ainda não descobri outro, senão um certo doutor, que está neste sítio, assalariado para dar cabo de quantos governadores aqui vierem; chama-se doutor Pedro Recio, e é natural de Tirtafuera, e veja Vossa Mercê, se, com este nome, não hei de recear morrer às suas mãos. Este tal doutor diz de si próprio, que não cura as enfermidades quando as há, mas que as previne para que não venham; e os remédios que usa são dieta e mais dieta, até por uma pessoa em pele e osso, como se não fosse maior mal a fraqueza do que a febre. Finalmente, ele vai-me matando a fome, e eu vou morrendo de despeito, pois, quando imaginei vir para este governo comer quente, e beber frio, e regalar o corpo em lençóis de holanda, sobre colchões de pluma, vim fazer penitência, como se fosse ermitão; e, não a fazendo por vontade, parece-me que, afinal de contas, sempre me há de levar o diabo".
Quixote, Cervantes, pág. 416, vol II, Edições Cultura, Trad. Viscondes de Castilho e de Azevedo, 1946.
Digo isto, senhor meu da minha alma, para que Vossa Mercê não se espante de eu até agora não ter dado aviso se estou bem ou mal neste governo, em que tenho mais fome do que quando andávamos pelas selvas e despovoados.
Escreveu-me o duque meu senhor, no outro dia, dando-me aviso de que tinham entrado nesta ilha certos espias para me matar; e, até agora, ainda não descobri outro, senão um certo doutor, que está neste sítio, assalariado para dar cabo de quantos governadores aqui vierem; chama-se doutor Pedro Recio, e é natural de Tirtafuera, e veja Vossa Mercê, se, com este nome, não hei de recear morrer às suas mãos. Este tal doutor diz de si próprio, que não cura as enfermidades quando as há, mas que as previne para que não venham; e os remédios que usa são dieta e mais dieta, até por uma pessoa em pele e osso, como se não fosse maior mal a fraqueza do que a febre. Finalmente, ele vai-me matando a fome, e eu vou morrendo de despeito, pois, quando imaginei vir para este governo comer quente, e beber frio, e regalar o corpo em lençóis de holanda, sobre colchões de pluma, vim fazer penitência, como se fosse ermitão; e, não a fazendo por vontade, parece-me que, afinal de contas, sempre me há de levar o diabo".
Quixote, Cervantes, pág. 416, vol II, Edições Cultura, Trad. Viscondes de Castilho e de Azevedo, 1946.
9.3.14
ABSINTO E GRANADINE IV - CUBA
Dizem
que em Cuba todos são estudiosos. Se eu fosse cubano, também
estudaria bastante para distrair a fome. Dizem que o Brazil é
o país do futuro, futuro que virou presente. Tomando pelo presente,
o futuro não parece animador. Se James Joyce vivesse no Brasil,
jamais teria escrito Ulisses. O Brasil é lindo, e é uma merda.
Dizem que o Brasil é uma merda – em muitos sentidos é verdade.
Viver no Brasil é bom porque não é tão ruim. Somos mentalmente
acomodados e preguiçosos. Posso falar mal do brasileiro pelo mesmo
motivo que posso falar mal de mim mesmo. O brasileiro gosta mesmo é
de gringo. O brasileiro é um cara carente e submisso. Adora ter
alguém para quem bater continência. Também parece que foi assim
com os poloneses e os africanos; ser índio é mais difícil, tanto é
que não existe mais nenhum de verdade. Há muitos brasileiros bons.
Mas são só alguns.
Todo
o governo tem obrigação de se deixar ser ridicularizado pelas
piores pessoas. Tudo o que ridiculariza um governo ainda é pouco.
Ridicularizar
é verbo transitivo direto e indireto. Alguém tem alguma coisa
ridicularizada por alguém, geralmente ridículo.
Ridículos
passivos e ativos em um troca-troca eterno. Os que ridicularizam os
ridículos também são ridículos, vide a imprensa. Todo esse
ridículo é o lugar comum da terra de cegos.
O
ser humano parece ser de natureza pobre; mesmo com todas as suas
pretensas riquezas, seu fim é adubar o solo e alimentar os vermes.
Por
isso tudo, eu declaro que sou ridículo. Honesto e, no momento, sadio
e pobre. E não que isso seja verdade.
6.3.14
EM DEFESA DE SCHOPENHAUER, CONTRA O AFORISMO 271 DE NIETZSCHE. HUMANO, DEMASIADO HUMANO
"A arte de raciocinar - O maior progresso feito pelo homem foi aprender a raciocinar corretamente. Isso não é coisa tão natural como supõe Schopenhauer, ao dizer que 'capazes de raciocinar são todos, de julgar, poucos'; mas foi algo aprendido tardiamente, e que até hoje não predomina. Nos tempos antigos a regra era o falso raciocínio: e as mitologias de todos os povos, sua magia e superstição, seus cultos religiosos, seu direito, são as inesgotáveis jazidas de provas de tal afirmação". F.W. Nietzsche, Humano, demasiado humano, p.185, Editora Cia. das Letras.
Não seria já o "raciocinar corretamente" um julgamento? "Raciocinar" é o mesmo que "raciocinar corretamente"?
Zaratustra e eu, estamos sós.
Não seria já o "raciocinar corretamente" um julgamento? "Raciocinar" é o mesmo que "raciocinar corretamente"?
Zaratustra e eu, estamos sós.
GUERRA
Os jovens lutam nas guerras.
Os velhos as comandam, nestóridas.
Tal qual sempre foi.
A verdade deve existir.
Existiu em Chamberlain X Churchill.
Como são terríveis, os homens,
E os cachorros,
E as pombas...
Os velhos as comandam, nestóridas.
Tal qual sempre foi.
A verdade deve existir.
Existiu em Chamberlain X Churchill.
Como são terríveis, os homens,
E os cachorros,
E as pombas...
O VELHO DO METRÔ
Ele tomou banho na firma.
Tem sessenta e seis anos, ou cinquenta e nove.
Separou-se da mulher; os filhos cresceram e se foram.
Tomou banho na firma.
Tenta ser elegante, mas em algo falhou.
Falhou na velhice.
O metrô balança.
O velho retesa a espinha.
Tomou banho na firma.
Cheira a sabonete.
Um rapaz sentado se mexe para um lado,
Mexe-se para o outro.
Parece incomodado.
Vira-se para o velho e faz menção...
O velho franze o cenho:
-NÃO! - grita, imperativo.
Naquele "NÃO" se ouve:
- NÃO me diga que não sou homem;
- NÃO me venha com sua juventude;
- NÃO venha dizer que está se levantando por mim!
- NÃO me perturbe! Deixe-me em paz! Eu sei me virar!
Mas o velho apenas disse, enfático: "NÃO".
Ele tomou banho na firma. O do lado era jovem e fedia.
O velho falhou na velhice.
Tem sessenta e seis anos, ou cinquenta e nove.
Separou-se da mulher; os filhos cresceram e se foram.
Tomou banho na firma.
Tenta ser elegante, mas em algo falhou.
Falhou na velhice.
O metrô balança.
O velho retesa a espinha.
Tomou banho na firma.
Cheira a sabonete.
Um rapaz sentado se mexe para um lado,
Mexe-se para o outro.
Parece incomodado.
Vira-se para o velho e faz menção...
O velho franze o cenho:
-NÃO! - grita, imperativo.
Naquele "NÃO" se ouve:
- NÃO me diga que não sou homem;
- NÃO me venha com sua juventude;
- NÃO venha dizer que está se levantando por mim!
- NÃO me perturbe! Deixe-me em paz! Eu sei me virar!
Mas o velho apenas disse, enfático: "NÃO".
Ele tomou banho na firma. O do lado era jovem e fedia.
O velho falhou na velhice.
5.3.14
O RISO DO HADES
Quanto de dor
Pode uma alma suportar?
Do frio ou do calor,
Do ser ou do amar?
Fidalgo coração,
Amor de amante, alcança o imigo
Das grevas reluzentes
Do herói baixado ao Hades
O pleito impertinente
Irrita os Eternos,
Chora, dos Infernos
Que os quer todos presentes,
Enquanto o Hades ria
Da sua idiotia.
Pode uma alma suportar?
Do frio ou do calor,
Do ser ou do amar?
Fidalgo coração,
Amor de amante, alcança o imigo
Das grevas reluzentes
Do herói baixado ao Hades
O pleito impertinente
Irrita os Eternos,
Chora, dos Infernos
Que os quer todos presentes,
Enquanto o Hades ria
Da sua idiotia.
4.3.14
ABSINTO E GRANADINE III - B.O
-->
BOLETIM DE
OCORRÊNCIA
Era
o quarto boletim em sete meses. Três horas na espera. Não foi tão
ruim assim ficar na delegacia. Tinha uma cadeira forte sustentando
seus 115 quilos e, como companhia, seu pequeno, sétimo filho, a
sugar-lhe agradavelmente o peito.
Doíam-lhe as
ancas e o nariz ainda latejava. O escrivão era um espécime bem
peculiar, com sua grande verruga na testa. Se ela lesse Tchekóv o
compararia a um daqueles burocratas russos – nada fazia, nada
parecia fazer; assim mesmo conseguiu levar três horas para
atendê-la.
Não obstante,
ela não se incomodava nesse momento, uma vez que o Elvirson mamava
com vontade, hora ou outra mordiscando-lhe o peito, o que para si,
dava uma sensação agradavelmente dolorosa, que a distraía um pouco
daquela dor muito forte que emanava das costelas fraturadas.
- Severina de
Jesus Silva! – finalmente chamou o beleguim.
- Eu, sim sinhô
– levantou-se ela com a desenvoltura de um guerreiro espartano,
embora o abafado gemido lhe denunciasse a dor.
Observou-a o
escrivão, deixando escapar um breve olhar consternado, logo
substituído pela impessoalidade exigida pela mãe das leis, a
constituição, e pelos escritores russos.
- Dona Severina!
- Eu quero fazê
queixa do Juvenal!
O escrivão
empertigou-se e colocou o papel na máquina de escrever, pois o micro
quebrara mais uma vez. Durante cerca de quinze minutos, datilografou,
aproximadamente, a história da pobre jovem senhora gorda:
“(...sic)
que a declarante encontrava-se em sua residência cozinhando em fogão
à lenha para os cinco filhos, que ela tinha sete, mas um era de
peito e o outro morrera na dengue do ano próximo passado, quando o
averiguado Juvenal, seu marido, adentrou à residência na
favela à beira do córrego Uiramefodeos em estado de embriaguez. Que
o filho da declarante Carlinhos, 10 anos, ao correr para abraçar o
pai foi pelo mesmo impedido com um golpe no ventre. Que a declarante
queixou-se a Juvenal, ‘assim você mata o menino’ e o averiguado
então se enfezou, passando a desferir pontapés, vindo a declarante
a cair sobre a mesa, causando lesões corporais à declarante e a
mesa espatifando-se, onde o averiguado não teve pena, continuando a
chutar a declarante no chão(...)”
Terminado o
texto, o escrivão estendeu a mão trêmula a Severina, com a caneta
para que ela assinasse o BO.
- Mas seu dotô,
se eu assiná isso o Juvenal vai preso?
- Eu pedirei
pessoalmente ao delegado que prenda o seu marido. Hoje mesmo o safado
dorme em cana!
- Intão num vô
assiná não. Vô tentá resolvê na conversa.
E Severina se
foi, criança ao peito, toda torta. O escrivão amassou o papel,
lançando-o ao cesto, e foi até o boteco tomar uma caninha, no
intuito de mitigar a tremedeira.
ABSINTO E GRANADINE II - Dilma
DILMA
Madrugada.
Ruas quase totalmente desertas. Tem um cara bêbado cantando na
Brigadeiro. A Brigadeiro é a avenida que começa no viaduto D.
Paulina. D. Paulina sai da R. Maria Paula e termina quando eu passo
em frente à padaria Santa Tereza, daí logo avanço o Largo do João
Mendes, que lá está, João Mendes, em forma de busto e,
atravessando a rua de carros assassinos e assassinos a pé, chego à
praça da Sé.
Mas
nada disso importa, porque tem um cara bêbado cantando na
Brigadeiro, à uma da manhã. E hoje, neste momento, o que importa é
esse cara bêbado cantando na Brigadeiro, onde durmo em um hotel de
trinta e cinco paus e agora me debruço na janela, que dá para a
Brigadeiro. O cara que canta está doidão e seria o único na
calçada, não fosse uma tia com uma sacola, que canta hinos da
igreja para contrapor aos hinos mundanos que o cara bêbado canta na
Brigadeiro.
Eu,
lá da janela do hotel de trinta e cinco, penso em uma música que
diz que a realidade é mais estranha do que a ficção, e cogito
unir-me aos dois na cantoria, mas não me atrevo.
O
que a Dilma tem com isso? Não sei.
Se
não tem comigo, tem com o cara que canta na Brigadeiro, se não com
ele, com o polícia cuja viatura acabou de rasgar na avenida aqui em
frente, e os demais polícias que estavam com ele. Se não, tem com o
ambientalista que acaba de ser assassinado, conforme dá na TV, e
para cujo a polícia não deu proteção porque estava prendendo
maconheiros à noite e apoiando despejos, de dia. Se Dilma nada tem
com eles, deve ter com as mulheres e homens e crianças assassinados
por serem fracos e inocentes nas mãos de covardes, poderosos ou não,
covardes ricos e pobres, ou fundamentalistas charlatões universais e
do reino de deus e o diabo na terra do sol.
O
problema é que os de cujus sempre deixam de cujinhos.
Então,
grito como Freud Flinstone: “Dilma, faça alguma coisa!”, e quem
me responde é o Barney, e o Barney é o cara bêbado que canta na
avenida Brigadeiro.
O
que a Dilma tem a ver com isso? Não sei.
Alguém
fala em Estado, outros dizem que a ditadura acabou, e eu sempre acabo
duvidando e acendendo um cigarro e ao fim rezo alguma oração porque
acabo sempre acreditando em Deus e cantarolando musiquinhas da
infância que passei na Igreja Batista.
Mas
o cara que canta na Brigadeiro nada tem a ver com isso.
Para
ele, foda-se o que eu penso.
E
Dilma? Não sei.
ABSINTO & GRANADINE - Jack Keslarek - Registro
REGISTRO
Registro
histórico. Um botequim. Um bairro pobre. Um vento lábil sob um céu
azul brilhante de abril. Uma sexta-feira, feriado de algum calendário
panteísta-científico-católico, e um homem extremamente laico
caminha por uma avenida neste lugar meio civilizado. Somos pobres,
mas somos meio limpinhos.
Bebo muito e leio
devagar as notícias do dia, pulo algumas palavras e às vezes tenho
que voltar um pouco e recuperá-las como reses fugidias. Todos esses
adjetivos me deixam perplexo, e procuro me livrar deles.
Registro
histórico. Leio o jornal, encostado no balcão de um bar, sentado
sobre um banquinho, um tanto atingido pela lequéssia, bambo como se
estivesse sentado naquela cadeira do brinquedo do parque, que quebrou
(parque, brinquedo, cadeira e eu), afinal dá muito trabalho ser o
Esteves sem metafísica.
Sou um
kafkaniano, então, se me perdoam o odioso adjetivo. Na posição de
kafkaniano, não me posso permitir partidarismo que não seja
anárquico, idiossincrático, profundamente pessoal e, com isso,
completamente eivado pelo vício da democracia, como diz Voltaire,
pode falar suas besteiras à vontade que eu não sou de direita nem
de esquerda, sou de baixo e estão todos em cima de mim.
Ocorre que Sir
Joseph K. anda por entre nós, inclusive em nossos erros gramaticais
ou em nossos momentos de sensível sabedoria infantil. Como bestas
que somos, recusamos aceitar que o somos.
Então o bar
começa a se tornar ruidoso, e à minha rude figura meio limpinha são
apresentadas rudes figuras. Nós, rudes, quase não sabemos tomar
intimidades que não passem pela agressão, sendo fácil
distinguir-nos:
- E aí, seu
viado!
- Fala, bâmbi!
Odeio adjetivos!
A raiva cresce
conforme estaciona um jipe sofisticado, do qual sai uma figura com
atitude estúpida, batendo no balcão do bar e pedindo uma dose de
caninha 51 com limão. O cuidado que ele parece ter com o carro não
se aplica à sua figura terrivelmente inculta e decadente. De dentro
do veículo, um desagradável barulho alto pretende-se música, e eu
não deixo de me impressionar como neste país, que é pobre, até a
escória está andando em carrões, com o quê só crescem os
atropelamentos de inocentes, principalmente as crianças descalças e
sem camisa, das quais os necrotérios municipais estão cheios, e os
lucros das multinacionais que matam chineses a dois dólares o dia
para que idiotas e retardados de idade mental impúbere tenham carros
e outras porcarias eletrônicas no Brasil.
A raiva cresce
quando as moscas pousam sobre minha cabeça privilegiada, achando que
eu não passo de um torresmo cru, delícia meio nordestina, meio
polonesa, um apetitoso banquete que fazem as moscas com o sebo da
minha testa, cultivado pelo clima de trópico que procuro aplacar
jogando uma água no rosto.
Estes sujeitos,
que sempre parecem saídos de tavernas primitivas, depois mesmo de
velhos, prosseguem como Bocage em incultas produções, achando-se
sábios e espertos até o solo sobre suas carcaças verdejar,
sobrevindo todos como bom e pretensioso pedaço de adubo.
Aqui temos o
paradigma do brasileiro. Há o adubo esperto e o adubo estúpido,
todos férteis e nenhum renegado pelos vermes.
Registro
histórico.
NIETZSCHE
Paixão e direito - Ninguém fala com mais paixão de seus direitos do que aquele que no fundo da alma tem dúvida em relação a esses direitos. Levando a paixão para seu lado, ele quer entorpecer a razão e suas dúvidas: assim adquire uma boa consciência, e com ela o sucesso entre os homens.
2.3.14
AUDOUS HUXLEY
"Uma Nova Teoria Biológica" era o título do trabalho que Mustafá Mond acabava
de ler. Ficou sentado algum tempo, as sobrancelhas franzidas meditativamente; depois
tomou a pena e escreveu sobre a página de rosto: "A maneira pela qual o autor trata
matematicamente a concepção de finalidade é nova e extremamente engenhosa, mas
herética e, no que diz respeito à ordem social presente, perigosa e potencialmente
subversiva. Não publicar." Sublinhou essas palavras. "O autor será mantido sob vigilância
especial. Sua transferência para o Posto de Biologia Marinha de Santa Helena poderá
tornar-se necessária." Uma lástima, pensou, enquanto assinava. Era um trabalho
magistral. Mas se se começasse a admitir explicações de ordem finalística... bem, não se
sabia qual poderia ser o resultado. Era o tipo da idéia que poderia facilmente
descondicionar os espíritos menos estáveis das castas superiores - que poderia fazê-los
perder a fé na felicidade como Soberano Bem, e levá-los a crer, ao invés disso, que o
objetivo estava em alguma parte além e fora da esfera humana presente; que a finalidade
da vida não era a manutenção do bem-estar, e sim uma certa intensificação, um certo
refinamento da consciência, uma ampliação do saber... O que, refletiu o Administrador,
bem podia ser verdade. Mas inadmissível nas circunstâncias presentes. Retomou a pena
e, sob as palavras "Não publicar", riscou um segundo traço, mais espesso, mais preto do
que o primeiro; depois suspirou. "Como seria divertido", pensou," se não se tivesse de
pensar na felicidade!"
Admirável Mundo Novo, pág. 100
de ler. Ficou sentado algum tempo, as sobrancelhas franzidas meditativamente; depois
tomou a pena e escreveu sobre a página de rosto: "A maneira pela qual o autor trata
matematicamente a concepção de finalidade é nova e extremamente engenhosa, mas
herética e, no que diz respeito à ordem social presente, perigosa e potencialmente
subversiva. Não publicar." Sublinhou essas palavras. "O autor será mantido sob vigilância
especial. Sua transferência para o Posto de Biologia Marinha de Santa Helena poderá
tornar-se necessária." Uma lástima, pensou, enquanto assinava. Era um trabalho
magistral. Mas se se começasse a admitir explicações de ordem finalística... bem, não se
sabia qual poderia ser o resultado. Era o tipo da idéia que poderia facilmente
descondicionar os espíritos menos estáveis das castas superiores - que poderia fazê-los
perder a fé na felicidade como Soberano Bem, e levá-los a crer, ao invés disso, que o
objetivo estava em alguma parte além e fora da esfera humana presente; que a finalidade
da vida não era a manutenção do bem-estar, e sim uma certa intensificação, um certo
refinamento da consciência, uma ampliação do saber... O que, refletiu o Administrador,
bem podia ser verdade. Mas inadmissível nas circunstâncias presentes. Retomou a pena
e, sob as palavras "Não publicar", riscou um segundo traço, mais espesso, mais preto do
que o primeiro; depois suspirou. "Como seria divertido", pensou," se não se tivesse de
pensar na felicidade!"
Admirável Mundo Novo, pág. 100
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