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Outro
dia (que por acaso é este), peguei um cigarro para acender. É uma
relação de amor e ódio, vida e morte. MORTE é o que está escrito
no maço. “MORTE” está em tipo branco sobre fundo preto, e
abaixo, a foto do presunto humano. Descrita rapidamente, é uma
imagem atraente como aquela que um homem usaria mentalmente para não
ejacular rápido demais. Não tem rosto, vai do pescoço ao umbigo.
Eu que estou com uma tosse danada, ponho-me a pensar. Agora que o
dito cujus está
morto, o que sente? Ele está sofrendo ou gozando as delícias do
paraíso? Está incomodado em ser fotografado com aquele buraco da
traqueotomia e os indelicados cortes do bisturi da necropsia? Ou,
sente-se como um torresmo, que não sendo mais porco não pode gritar
e se deixa, feliz e suculento, comer por um pingaiada qualquer em
estado terminal, num um botequim da Sé, ou ainda, jogado ao lixo, se
permite ser comido gostosamente pelos vermes pululantes, dando assim
sua final contribuição para a cadeia universal da biosfera?
Incomodam-me os
paladinos da correição política de hoje, esses covardes que não
podem ouvir falar de morte: amam a vida demais, dizem. Saberão eles
o que é a vida? E o amor? A verdade? Oh, eles sabem de tudo.
Nietzsche peida no caixão, e Heráclito, a tiracolo.
Sofro com o meu
vício, o cigarro, sofro alegremente, pois minha tosse amenizou, e
quem sabe eu vivo um pouco mais, ou deixo de sobreviver vegetando,
como diz meu pai, que me queria juiz de direito (de direita?): talvez
aí eu conseguisse ser um perfeito capote de Tolstoi. Acendo mais um
cigarro, tusso e cuspo um naco sólido misturado com sangue. Estou
lúcido, canibais da vaidade, peguem-me morto! Morto, serei mais
perigoso, morto vou valer mais, e sobreviverei a vocês. A morte
nunca morre! Que o diga Vincent, o pintor!
O cigarro acaba.
Futuco o maço, na esperança de mais um. Não há. Acabou. Por hoje,
o cigarro morreu. Talvez amanhã eu acorde vivo.
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