17.3.14

ABSINTO E GRANADINE VI: CRIANÇAS NA JANELA



Cats in the cradle. Crises de ansiedade. São dias difíceis. Observo pela janela a superficialidade. Lá está a creche, que dá de frente para meu novo quarto alugado. Não mais hotéis baratos. Hora do recreio, o desfile anárquico das crianças e seus sonhos estertorados, cuja maioria jamais se realizará.
Preso à cadeira, reflito a precariedade pueril. Nunca resolvi ser artista, simplesmente não tive escolha. Ao diabo com o livre arbítrio! Como homem de ação, sou menos que medíocre. Como artista, eu me respeito, mas muito pouco. Uma discreta náusea me ataca. É só o estômago. Não preciso de ninguém para me mostrar como sou pequeno, tal e qual os sonhos de eternidade do homem, físicos e metafísicos.
Eu cedo à ansiedade. Não vou trabalhar. No serviço, especulações. Desde as dez da manhã estava pronto, banho tomado, roupa vestida, perfumado, dentes escovados, sentado na cadeira. Às duas da tarde, desisti. Melhor não ter ido. Especular-se-ia mais sobre meu estado. Já estou acostumado. Tentei muitas pílulas. Quetiapina. Diazepam, na veia. Cedi a cessão nada nobre, mas e daí?
Não fossem os cigarros, nem sairia de casa. Suo perante a porta da rua, suo frio perante a porta que me leva ao mundo. A abstinência me inocula coragem, atravesso a rua correndo, do outro lado está o bar. Pego dois maços, pago, e retorno no mesmo passo em que fui, sento-me, na cadeira, para não mais levantar, ao menos hoje. Olho pela janela. As crianças já se foram, como inúmeras gerações delas. Não existe livre arbítrio. Implicaria em poder decidir não morrer.
O pátio está vazio. Fecho a cortina. A única infância, aqui e agora, é a das minhas lembranças. Adoro-te, morte, desde que sejas minha. Ao menos engraxei os sapatos.


Um comentário:

Dama da Noite disse...

Ainda bem que recobrou o livre-arbítrio, querido Jack. Se engraxou os sapatos é porque estava melhor.