11.3.14

TRECHO DA CARTA DE SANCHO PANÇA A D. QUIXOTE DE LA MANCHA - Homenagem aos 400 anos de Quixote

"A ocupação de meus negócios é tão grande, que não tenho lugar nem para coçar a cabeça, nem para cortar as unhas, de forma que as trago tão crescidas, que só Deus lhes pode dar remédio.

Digo isto, senhor meu da minha alma, para que Vossa Mercê não se espante de eu até agora não ter dado aviso se estou bem ou mal neste governo, em que tenho mais fome do que quando andávamos pelas selvas e despovoados.

Escreveu-me o duque meu senhor, no outro dia, dando-me aviso de que tinham entrado nesta ilha certos espias para me matar; e, até agora, ainda não descobri outro, senão um certo doutor, que está neste sítio, assalariado para dar cabo de quantos governadores aqui vierem; chama-se doutor Pedro Recio, e é natural de Tirtafuera, e veja Vossa Mercê, se, com este nome, não hei de recear morrer às suas mãos. Este tal doutor diz de si próprio, que não cura as enfermidades quando as há, mas que as previne para que não venham; e os remédios que usa são dieta e mais dieta, até por uma pessoa em pele e osso, como se não fosse maior mal a fraqueza do que a febre. Finalmente, ele vai-me matando a fome, e eu vou morrendo de despeito, pois, quando imaginei vir para este governo comer quente, e beber frio, e regalar o corpo em lençóis de holanda, sobre colchões de pluma, vim fazer penitência, como se fosse ermitão; e, não a fazendo por vontade, parece-me que, afinal de contas, sempre me há de levar o diabo".

Quixote, Cervantes, pág. 416, vol II, Edições Cultura, Trad. Viscondes de Castilho e de Azevedo, 1946.

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