25.3.14

O PORTA-CAFÉ E O SILÊNCIO DO GRANDE NADA

O silêncio era tanto e ele pensava nas palavras dos homens que um dia imaginou admirar. Deus estava sentado à sua frente, observando-o, apenas, e ele em silêncio, preocupado em não blasfemar. Este era um homem íntegro, reto, temente a Deus, mas um pouco incapaz em certos momentos de se desviar do mal, antes do fatal abalroamento.

E ele sabia desconfiar daquele que rodava, observando, e desejava dos filhos da sua vida que nenhum pecasse por observá-lo pecando. Sua vida era arte; a vida não imita a arte, a vida não poderia ser imitada, por isso jamais a vida poderia imitar o que quer que fosse com perfeição.

A arte, imitação da vida: apenas símbolos. Mas a arte como vida: ah, isso não é só metalinguagem.

Então ele se sentiu um pouco perplexo e acabrunhado com seus próprios pensamentos e com a sua precariedade. Deus encarou-o, condescendente.

O porta-coador de café estava na pia desde manhã, e só agora deslizou sobre seu próprio eixo, emitindo o único som que quebrou o silêncio.

No silêncio profundo, o porta-café pareceu-lhe um dos seres mais vivos e cheios de espírito. Deus, a personagem principal, olhava-o com carinho. Em outras ocasiões, Deus já tinha bebido com ele até cair tombos homéricos de forma propositada, mas se levantava sempre (Deus nunca morre, parece às vezes que se machuca) e, ao final, era sempre Deus que o levava para casa e o colocava na cama.

Ele sabia: não dá para ser mais realista que a realidade. Depois de tudo o mais, o humano ainda era feito de palavras, e Deus estava em um entendimento alcançado apenas de forma muito limitada. Mas Deus estava lá, sentado diante dele, como tantas vezes estivera. E Deus queria que ele conhecesse.

E foi Deus que interrompeu o silêncio para murmurar uma frase:

Entre eu e você, apenas o Chico Buarque tem medo da construção?

E juntos, abriram uma cerveja.


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